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    Evaldo Cabral é mais afeito à polêmica intelectual que à concórdia fácil

    LILIA MORITZ SCHWARCZ
    ESPECIAL PARA A FOLHA

    04/04/2015 02h20

    Corria o dia 27 de março, quando um de seus casarões mais conhecidos do centro do Rio surgiu todo iluminado. Era dia de posse de mais um imortal, na sede da Academia Brasileira de Letras: o diplomata e historiador Evaldo Cabral de Mello, 79, que adentrou o salão da ABL com sua típica expressão ressabiada.

    O ritual foi sendo seguido à risca: saudação dos acadêmicos, palestra do homenageado, discurso de um dos imortais, e entrega das insígnias –o colar e a espada. Já o novo membro atravessou a liturgia.

    Evaldo Cabral fez agradecimentos sintéticos; resvalou a praxe de biografar os antigos detentores da cadeira; defendeu o papel da historiografia como gênero literário; e advogou uma escrita narrativa e distante das ciências sociais.

    Tomas Rangel/Folhapress
    O historiador e imortal Evaldo Cabral de Mello
    O historiador e imortal Evaldo Cabral de Mello

    Brincalhão, disse: "Lévi-Strauss só não teria feito pesquisa de arquivo, pois não os encontrou nos grupos que investigou".

    Diplomata de carreira, Evaldo Cabral é, paradoxalmente, mais afeito a uma polêmica intelectual do que à concórdia fácil.

    Sem negar sua origem pernambucana, local que jamais abriu mão da crítica e da vocação republicana, ele alimenta debate até debaixo d'água e sempre tomou o caminho da contramão.

    Optou pela historiografia inglesa quando a moda era a francesa; marcou sua obra pela narrativa num momento em que o que parecia importante era a teoria; foi contra a interdisciplinaridade quando a voga era o diálogo entre disciplinas e, sobretudo, virou o eixo da análise da trajetória brasileira.

    Realizou o dito que costuma usar como metáfora: "a história é como a casa do senhor, tem muitas portas e janelas". Em vez de tomar como centro de análise o que se passou no Rio de Janeiro, contou a história do Brasil a partir da janela de Pernambuco.

    Nosso diplomata abriria a fenda de um outro passado colonial, de uma gênese diferente da nacionalidade, e de uma nova independência, não pautada por interpretações saquaremas e das elites cariocas.

    Livros como "Olinda Restaurada" (1975), "Rubro Veio" (1986), "O Negócio do Brasil" (1998); "A Fronda dos Mazombos" (1995); "O Norte Agrário e o Império" (1984), "O Nome e o Sangue" (1989), "A Ferida de Narciso" (2001); "Nassau: Governador do Brasil Holandês" (2006) e "A Outra Independência" (2002), entre outros, são clássicos da nossa historiografia.

    As obras percorrem da Colônia ao Império brasileiros, e carregam um método próprio. Opondo-se a uma tendência que tem assimilado técnicas de outras ciências humanas, Evaldo Cabral lamenta a perda da dimensão narrativa da história. "Não me refiro a escrever bem, e sim de que história é basicamente uma concatenação de eventos".

    Mais do que isso, mostra-se avesso a dicotomias. Evita "a romantização dos marginais, sucumbindo à tentação que, no outro extremo da escala social, é a dos genealogistas e a dos velhos historiadores, consistente em idealizar as classes dominantes".

    MANIA DE IDENTIDADE

    Evaldo Cabral é também um incansável paladino da pesquisa em arquivos, e fez da sua profissão de diplomata um trunfo. Aliás, são da maior relevância as fontes que encontrou e que garantem posição estratégica para Bahia e Pernambuco.

    Tal atenção a um determinado regionalismo poderia parecer como uma defesa da "identidade". Engana-se, porém, aquele que pensa que essa é saída óbvia na produção de Evaldo Cabral. Não poucas vezes o autor se manifestou contrariamente ao que chamou de "mania brasileira": esse costume de tentar descobrir a qualquer preço a identidade nacional.

    O fato é que, segundo ele, países nascidos do colapso dos impérios espanhol e português teriam prolongado o gosto pela "autoanálise coletiva", ausente em outros países de tradição recente, como os Estados Unidos, o Canadá e a Austrália. E foi, sobretudo, no Brasil e no México que essa tradição do ensaísmo peninsular teria fincado raízes persistentes.

    Por sinal, Evaldo Cabral é contra o consenso criado em torno do "ensaísmo nacional". Na opinião do novo imortal, esse tipo de "interpretativismo" faz um desserviço à historiografia. "Os brasileiros estão mesmerizados pela sua originalidade", escreveu ele, que a despeito de se dedicar ao estudo de seu Estado há mais de quatro décadas afirma "não saber o que uma identidade pernambucana venha a ser".

    Contra "os camelôs da identidade", afirma ser premente evitar "a provincialização deprimente". Porém, mais do que um cativo do "Brasil holandês", Evaldo Cabral é um intérprete (amargurado) do país.

    É certo que história não é só concatenação de eventos, assim como a antropologia não pode ser considerada um modelo exclusivamente sincrônico. Polêmicas à parte, vale mais destacar a maneira como Evaldo Cabral orquestra os eventos que seleciona e mostra como a boa teoria é aquela que está internalizada no relato.

    Eis uma obra da vida inteira, que não se leva pela vala comum das novidades. Historiador que é historiador, como Evaldo não se cansa de dizer, é aquele capaz de se identificar com seus objetos, e "calçar os sapatos no morto".

    LILIA MORITZ SCHWARCZ é historiadora e autora de "As Barbas do Imperador" (Companhia das Letras)

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