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    Baú 'kaótico' de Jorge Mautner revela tesouro de raridades e obras inéditas

    GABRIELA SÁ PESSOA
    ENVIADA ESPECIAL AO RIO

    17/04/2015 02h00

    Não tente compreender Jorge Mautner. "Eu não sou entendível. Sou perceptível", declara o poeta, músico, compositor, tropicalista e criador do Partido do Kaos, doutrina que aposta na cultura brasileira como esperança para o futuro da humanidade.

    Ele abriu à Folha seus arquivos com cerca de 4.000 itens, que acabam de ser catalogados. É um baú caótico, ou kaótico, organizado durante dois anos e que agora vem a público no portal "Panfletos da Nova Era".

    Financiado pelo Itaú Cultural com incentivo da Lei Rouanet, o projeto de recuperação revelou –em meio a gravações, bilhetes, envelopes e pastas– trabalhos inéditas de Mautner. São músicas, poemas e até um romance completo, jamais publicado. Uma nova obra de Jorge Mautner irradia, para usar uma palavra cara ao artista, da sala de um casarão antigo no Rio onde ele recebe a reportagem.

    "Tudo isso, os 4.000 itens, são coisas que de fato nunca foram vistas. Eu diria que 70% disso tudo é inédito. São muitas obras, infinitas outras obras", diz a pesquisadora Maria Borba, que faz parte da equipe de quatro pessoas que trabalha na recuperação do acervo de Jorge Mautner, financiada pelo Itaú Cultural.

    Daniel Marenco/Folhapres
    Mautner faz movimentos do tai chi chuan, no Rio, em foto tirada com múltipla exposição
    Mautner faz movimentos do tai chi chuan, no Rio, em foto tirada com múltipla exposição

    Parte desse material já está disponível on-line. Outra parte –exclusivamente literária– vai integrar uma edição da Companhia das Letras com textos inéditos de Mautner prevista para janeiro de 2016, quando ele completa 75 anos de vida e 60 de carreira. Um deles é o livro "Geração em Pânico", que o autor nem sequer se lembrava de ter escrito.

    "Não tem data. Deve ser de 1962 ou 1963", conta, ao retirar os originais da obra de uma maleta. No cálculo de Jorge, foi escrito entre "Deus da Chuva e da Morte", livro de 1962 que lhe rendeu um Prêmio Jabuti, e "Kaos", publicado em 1963 –antes, portanto, de lançar canções que se tornariam clássicos da MPB como "O Vampiro", "Maracatu Atômico", e "Lágrimas Negras", as duas últimas com o parceiro inseparável Nélson Jacobina (1953-2012).

    O artista passa as mãos pela pasta de papelão marrom gasta pelo tempo das gavetas, onde se lê "Jorge Mautner" escrito à mão em caneta esferográfica. Folheia as páginas, batidas à máquina, e para num trecho aleatório.

    "Seu nome era Rodrigo. Era um jovem de cabelos negros que possuía um automóvel esporte. Pertencia à organização terrorista do MAC, Movimento Anticomunista de Paris", lê o autor, antes de fechar o livro sobre uma revolução no Brasil durante a Guerra Fria.

    UM CARAMUJO

    Sentado em frente a uma mesa com o tampo ornamentado com azulejos de florzinhas vermelhas, o Jorge Mautner de hoje ri para o Jorge Mautner dos anos 1970, cuja voz ecoa dos alto-falantes de um notebook: "Eu queria ser um caramujo, sem responsabilidades".

    É o trecho recuperado de uma gravação em fita cassete de suas anotações mentais para o roteiro da peça "Exu Dionísio Apolo do Terror".

    Sobre a mesa, espalham-se versos anotados no verso de envelopes, poemas que começam quando o recado de "encontrar José na Argumento às 14h" acaba.

    "É nessas coisas em que você vê a vida do Jorge, vê que está tudo misturado", conta Maria Borba, manuseando parte da poética de Mautner em papelotes guardados em saquinhos plásticos.

    O "Panfletos da Nova Era", dizem os pesquisadores, quis emular a forma misturada do pensamento do artista –que, como um casco de caramujo, dá voltas sobre si mesmo e encadeia em um mesmo raciocínio o Califado de Bagdá, Gilberto Freyre e números negativos. Numa mesma música, inclui sapo cururu, bandeira do Brasil e a lua.

    E, num mesmo exercício, combina a programação da TV aos movimentos milenares do tai chi chuan. "Tem as bases medicinais [da arte marcial] que são paradas. E fico vendo televisão, é claro, é tudo pragmático também. Claro, fico me divertindo e fazendo aquilo", demonstra Mautner, enquanto mexe braços e pernas suavemente.

    João Paulo Reys, que também trabalha na equipe de organização do acervo do artista, conta que "Panfletos" não traduz o pensamento de Mautner, antes expõe um fractal interativo com suas principais referências.

    "Tudo o que ele conta conseguimos representar com algum item. O nascimento [em 1941, em frente ao cassino da Urca, no Rio], a família fugindo [do Holocausto] da Europa. Temos os documentos de tudo", comenta Reys.

    Para Mautner, a grande virtude da recuperação de seus arquivos e obras está em "irradiar a mensagem" que ele sempre buscou transmitir.

    "[Minha obra] tem dois trilhos. Holocausto nunca mais, e estar alerta para que nunca aconteça de novo. E irradiar a sina da cultura brasileira. Esses dois trilhos percorrem o tempo todo, e aí uma variedade de entroncamentos, de entrelaçamentos."

    UMA LOCOMOTIVA

    De um trilho a outro, sua arte é "como a locomotiva" de sua música de 1972. "Sempre usei a arte para transformar o mundo, com toda uma visão que seria o anarquismo pacifista da amálgama."

    Traduzindo: conceito herdado de José Bonifácio, a amálgama é a ideia de Mautner de que a formação miscigenada da cultura brasileira (em que, de acordo com ele, convivem pacificamente orixás, santos e samurais) seria a chave para o futuro desenvolvimento da humanidade.

    Uma utopia que preserva desde a juventude, quando criou em 1958 o movimento estético e político Partido do Kaos, antes de se filiar oficialmente ao Partido Comunista. Integrante da direção do partido, Mautner diz que sabia "um ano e meio antes" que o golpe de 1964 aconteceria.

    Hoje, apesar das manifestações recentes contra o governo, descarta a possibilidade de um novo golpe.

    "Vivemos a exuberância da democracia. Já pensou o que era o nazismo? A ditadura, a guerra do Vietnã?", diz ele. "Na democracia, você tem que tratar o próximo melhor do que a você mesmo."

    Exuberância que também vive Mautner, prestes a completar 75 (em janeiro) e 60 de carreira. Além do livro para 2016, ele acaba de gravar um documentário em Cuba e entra em estúdio em 2015 com Berna Ceppas, para disco de inéditas.

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