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    'Moll Flanders', romance pioneiro de Daniel Defoe, ganha nova tradução

    RAQUEL COZER
    COLUNISTA DA FOLHA

    18/04/2015 02h02

    Ladra, prostituta, mãe de mais de meia dúzia de crianças abandonadas pelo caminho, mulher de cinco maridos ao longo da vida –um deles, por incomensurável azar, seu próprio irmão–, Moll Flanders foi uma personagem tão à frente de seu tempo quanto injustiçada por ele.

    Criação de Daniel Defoe (1660-1731), ela acabou ofuscada pela obra máxima do autor, "Robinson Crusoé" (1719), romance sobre o náufrago que sobreviveu a 28 anos numa ilha do Pacífico e que se tornou um clássico da literatura universal.

    Obra marca o retorno de coleção literária de editora

    "Moll Flanders", lançado três anos depois de Defoe fazer fama com "Robinson Crusoé", segue a vida de uma mulher que nasceu na prisão e atravessou agruras até morrer, rica, como penitente –o "spoiler" era dado já no título original, que resume a trama em dezenas de palavras, como era praxe na época.

    Eis o título, tal como aparece na edição de 1722: "As Venturas e Desventuras da Famosa Moll Flanders, que Nasceu na Prisão de Newgate, e ao Longo de uma Vida de Contínuas Peripécias, que Durou Três Vintenas de Anos, sem Considerarmos sua Infância, Foi por Doze Anos Prostituta, por Doze Anos Ladra, Casou-se Cinco Vezes (Uma das Quais com o Próprio Irmão), Foi Deportada por Oito Anos para a Virgínia e, Enfim, Enriqueceu, Viveu Honestamente e Morreu como Penitente."

    Um dos primeiros romances ingleses, de uma época em que o conceito de romance nem existia, o livro ganhou duas traduções no Brasil, sendo a mais recente de mais de 40 anos atrás, e algumas adaptações menores ao cinema –uma delas estrelada por Kim Novak, em 1965; outra, por Robin Wright, em 1996.

    Agora, sai pela Cosac Naify, na tradução de Donaldson M. Garschagen, em edição que inclui ensaios dos escritores Virginia Woolf, Cesare Pavese e Marcel Schwob.

    Foi Woolf quem, um século atrás, atentou para uma qualidade para além do humor que perpassa o romance. O autor, para ela, verbalizou com o livro "algumas doutrinas muito modernas" no que diz respeito ao papel da mulher na sociedade.

    "Desde o começo é posto sobre ela o ônus de provar seu direito de existir. Ela depende totalmente de sua própria inteligência e raciocínio para enfrentar cada situação que surge", escreveu, em 1919, a futura autora de "Mrs. Dalloway" (1925).

    Comerciante por quase toda a vida e romancista tardio, além de jornalista, Defoe deixou ensaios que evidenciavam posições progressistas. Num deles, "Sobre a Educação das Mulheres", escreveu: "Tenho pensado com frequência que é um dos mais bárbaros costumes do mundo [...] negarmos às mulheres as vantagens da instrução".

    Essa posição não está explicitada em "Moll Flanders", mas transparece no livro. A certa altura, a personagem se depara com uma jovem rejeitada pelo pretendente quando ele descobre que ela andara investigando seu passado.

    "Como todas as vantagens estavam, infelizmente, do lado dos homens, descobri que a mulher perdera o direito de dizer não; agora a mulher via um pedido de casamento como um favor, e se alguma jovem tivesse a soberba de opor uma negativa, nunca mais teria oportunidade de fazê-lo pela segunda vez", constata a protagonista do livro.

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    Teorias à parte, o romance é um dos mais divertidos de Defoe. "Moll comete todos esses erros, abandona filhos, torna-se ladra, mas é uma personagem simpática. O leitor poderia reprovar sua postura, mas simpatiza com ela", diz John Milton, professor de estudos da tradução da USP.

    Para escrevê-lo, Defoe inspirou-se em folhetos populares que circulavam à época, com histórias de ladrões e prostitutas. Conforme explica o francês Marcel Schwob no texto de 1918 incluído na edição, houve uma gatuna famosa conhecida como Mary ou Moll, mas Defoe apenas teria criado em cima da ideia.

    Para dar credibilidade à história, porém, já que a ficção era vista com ressalvas, o autor diria que só editou o texto de uma "famosa senhora" que "considera conveniente esconder seu nome".

    Sobre a visão de Woolf em relação ao "feminismo" do livro, Sandra Vasconcelos, professora de literatura inglesa e comparada da USP, faz a ressalva de que ele "acaba enquadrando a personagem". "Defoe não poderia levar a história além do que levou, não existia a possibilidade da mulher totalmente livre, então ela se penitencia", conclui.

    MOLL FLANDERS
    AUTOR Daniel Defoe
    TRADUÇÃO Donaldson M. Garschagen
    EDITORA Cosac Naify
    QUANTO R$ 59,90 (510 págs.)

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