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    Nova lei de censura prejudica criação artística na Rússia

    RACHEL DONADIO
    DO "NEW YORK TIMES", EM MOSCOU

    18/04/2015 03h00

    Desde meados do ano passado, quando entrou em vigor na Rússia uma lei que proíbe obscenidades em apresentações públicas, o dramaturgo e diretor teatral Ivan Vyrypaev eliminou os palavrões da sua peça "Os Bêbados", em cartaz no Teatro Artístico de Moscou.

    Alguns atores interpretaram a nova versão com ar sério, mas outros davam piscadelas para mostrar o que havia sido cortado.

    Vyrypaev, 40, mostrou-se conformado com a nova lei. "É claro que as minhas peças perderam alguma coisa, mas a minha vida artística não foi arruinada", disse, acrescentando que também precisou retirar três outras peças, de outros dramaturgos, da programação do teatro moscovita Praktika, no qual é diretor artístico.

    No entanto, segundo Vyrypaev, o Praktika voltou a apresentar algumas peças com palavrões, depois de o presidente Vladimir Putin ter declarado em uma reunião com dramaturgos que, apesar de Tolstói e Tchékhov não precisarem de palavrões, "vocês, os autores, é quem sabem".

    A proibição e depois seu recuo são reveladores. Personalidades culturais da Rússia descrevem um ambiente de confusão e ansiedade, no qual a lei que proíbe obscenidades, assim como outra que criminaliza atos ofensivos a religiosos, é ignorada, a menos que alguém solicite a sua aplicação.

    Durante a era soviética, "pelo menos conhecíamos as regras", disse a editora Irina Prokhorova. "Agora não há censura oficial."

    Recentemente, o ministro da Cultura demitiu o diretor de um teatro estatal na Sibéria, alegando que ele havia violado a nova lei ao produzir uma montagem da ópera "Tannhäuser", de Wagner, com um cenário em que uma imagem de Cristo era colocada sobre a virilha de uma mulher nua. A acusação foi feita apesar de um tribunal ter arquivado a queixa, por falta de fundamentação jurídica.

    A Rússia tem uma efervescente cena teatral e uma Constituição que proíbe a censura impositiva, ao estilo soviético. Mas, em um momento de crise econômica e de crescimento do nacionalismo, personalidades culturais dizem que a mensagem do governo é clara: alinhem-se aos valores familiares e religiosos, ou então percam financiamentos ou sofram consequências ainda piores.

    "Tem a ver com traição -quem trai é colocado no nono círculo do inferno, como em Dante [na obra 'A Divina Comédia']", disse Kirill Serebrennikov, diretor do Centro Gógol, um dos pilares da atividade teatral moscovita. O resultado, afirmou, foi deixar dramaturgos e diretores "entre Cila e Caribdis -entre a censura e a autocensura".

    Serebrennikov ficou intrigado com uma reportagem no "Izvestia", jornal considerado próximo do Kremlin, na qual pesquisadores de uma instituição acadêmica avaliavam se montagens recentes de clássicos russos haviam "distorcido" as obras.

    A reportagem incluía análises da montagem de "Almas Mortas", de Gógol, produzida por Serebrennikov no Centro Gógol, e das versões de "Boris Godunov", de Pushkin, e "Os Irmãos Karamazov", baseada no romance de Dostoiévski, encenadas pelo diretor Konstantin Bogomolov em outros teatros.

    "O objetivo é mostrar que não podemos interpretar a literatura russa clássica, ou temos de dizer que não é literatura russa", disse. Ele acrescentou que, se os teatros perderem o financiamento público, dificilmente conseguirão substituí-lo por patrocínios privados.

    O ministro russo da Cultura, Vladimir Medinsky, disse que é uma prerrogativa daquela instituição acadêmica examinar a cultura russa. Ele garantiu que as conclusões dos acadêmicos não teriam impacto para os teatros.

    Medinsky rejeitou as críticas segundo as quais o ministério estaria sufocando a liberdade de expressão, ao financiar apenas projetos que cumpram os padrões de respeito aos valores familiares e religiosos ou que retratam a Rússia de Putin de forma positiva.

    "Quanto menos eles passarem a vida no Facebook, menos lixo terão na cabeça", disse sobre os críticos do governo. A oposição ao governo se concentra nas redes sociais desde que a Duma (Parlamento) aprovou em 2012 uma lei que restringe os atos públicos.

    Alguns grupos resolveram ignorar a lei. "Ela é anticonstitucional", disse Yelena Gremina, cofundadora do Teatr.doc, de Moscou, conhecido por montagens de forte teor político.

    Mas há tensão, especialmente depois que integrantes da banda Pussy Riot foram presas, em 2012, após entoarem uma canção contra Putin dentro de uma igreja.

    "Putin é um processo", disse Vyrypaev. "Eu o trato como o sulfeto de hidrogênio. Se você respirar muito, você morre. Mas, mesmo assim, ele é parte da natureza."

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