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    'Políticos não representam mais democracia,' diz autor David Hare

    NELSON DE SÁ
    DE SÃO PAULO

    05/05/2015 02h00

    O dramaturgo inglês David Hare, 67, não vem à Flip, a Festa Literária Internacional de Paraty, em julho, por estar lançando livro. Vem falar de teatro, "do tipo que faço".

    Autor de peças marcadamente políticas como "The Absence of War" (1993) e "Plenty" (1978), ele é também roteirista indicado ao Oscar, por filmes como "As Horas" (2002) e "O Leitor (2008).

    "The Absence of War", a ausência de guerra, retrata a campanha derrotada do Partido Trabalhista em 1992. O protagonista é baseado em Neil Kinnock, último líder propriamente de esquerda do partido, filho de mineiro.

    Foi vista à época por Tony Blair, que seria depois primeiro-ministro e contou ter saído do teatro com a decisão de não deixar se repetir a derrocada de Kinnock. Lançou então o New Labour, movimento que aproximou os trabalhistas do livre mercado.

    Walter van Dyck/Divulgação
    O dramaturgo David Hare
    O dramaturgo David Hare

    A peça foi remontada agora, às vésperas da eleição no Reino Unido, que acontece na próxima quinta-feira (7). "Frases são aplaudidas", conta Hare, dizendo que a perda de discurso pela esquerda e a crescente influência do marketing, apontadas pelo texto, só fizeram crescer.

    Os candidatos David Cameron, atual primeiro-ministro, conservador, e Ed Miliband, trabalhista, "saem por aí numa bolha, isolados das pessoas, exceto as que os apoiam, aterrorizados que alguém arranque o melhor deles".

    A artificialidade da campanha e a renúncia dos políticos ao Estado de bem-estar social do pós-guerra, abdicando até de educação e saúde em favor do mercado, levou à "sensação de que não representam mais a democracia: O que fazem os políticos? Não fazem mais nada".

    As peças são dadas como "clássicos modernos" pelos principais críticos ingleses, por refletir a política com personagens de destino trágico. Em cartaz na Broadway, dirigida por Stephen Daldry, "Skylight" é outra, mostrando como diferenças sociais e ideológicas separam amantes. "Escrevo sobre o específico com a esperança de que fique claro como as peças são enraizadas na história", diz.

    Polemista, David Hare travou uma das mais célebres batalhas teatrais entre autor e crítico, contra Frank Rich, do jornal "The New York Times", há 25 anos. Cobrou apoio à sobrevivência do teatro de qualidade na Broadway, sem sucesso. Foi a partir daí que o crítico ganhou a pecha de "açougueiro da Broadway".

    *

    Folha - "The Absence of War" era quase jornalismo e virou clássico moderno. Por quê?

    David Hare - Não vejo teatro político como diferente. Você diz que a peça é jornalística e, sim, eu descrevo em detalhe o que é disputar uma campanha, portanto há um nível realista. Mas há também um nível metafórico. É uma situação clássica, um homem que esqueceu o que está tentando fazer e por quê. Aquela cena em que o líder esquerdista é instruído a falar direto do coração e descobre que não consegue mais é uma cena universal, que pode ter acontecido a todos nós em diversos momentos da vida. Eu diria que cada uma das minhas peças tem uma metáfora tão profunda, espero, quanto um trabalho de Eugene O'Neill ou Harold Pinter.

    Tony Blair viu a peça [risos]. E supostamente achou ali inspiração para o New Labour.

    Não foi inspiração. Ele a viu como aviso. Ele me disse: "Eu saí determinado, quando vi a peça, a nunca deixar aquilo acontecer comigo".

    Mas o sr. pode ter ajudado a tornar o Partido Trabalhista o que ele virou depois?

    Não reivindico nada do que aconteceu com os trabalhistas, de jeito nenhum [risos]. Neil Kinnock, quando líder, foi gentil de me deixar entrar na campanha, sentar na sala e ver o que acontecia. A única influência que tive foi que não fizeram de novo [risos]. Disseram: "Nunca mais vamos deixar escritor entrar". E nunca mais deixaram.

    A peça identificou o que estava transformando a política em geral, com marketing...

    Sim, totalmente.

    Isso agora está mais forte?

    Ah, sim. Tem uma remontagem de "The Absence of War" em turnê pela Inglaterra, todo o país. E, conforme as eleições se aproximam, mais e mais frases específicas são aplaudidas, porque mais e mais relevantes. Kinnock pelo menos saía e falava com as pessoas, enquanto [David] Cameron e [Ed] Miliband não se encontram com ninguém que não tenha sido checado. Saem por aí numa bolha, completamente isolados de quaisquer pessoas, exceto aquelas que os apoiam. São aterrorizados pela possibilidade de um incidente em que uma pessoa do público consiga arrancar o melhor deles.

    A política ficou cada vez mais artificial. O partido de esquerda está lutando no mesmo terreno em que lutou 20 anos atrás, "Somos economicamente responsáveis", e a direita também, "Apesar das nossas ações, no fundo temos compaixão". Estão ambos falseando seus instintos. Não é surpresa que o eleitorado esteja cada vez mais afastado, porque sabe que não estão falando a verdade sobre coisa nenhuma. Esta campanha atual deve ser a menos relevante, exceto na Escócia, que já presenciei.

    No Brasil também se percebe um crescente desprezo por políticos, até pela democracia.

    São duas coisas diferentes. Não acredito que haja desprezo pela democracia aqui, mas há uma sensação de que os políticos não representam mais a democracia. No nosso país, o que os políticos nos dizem o tempo todo é que o Estado é grande demais, que vão sair do caminho enquanto o mercado distribui riqueza. E eles, os políticos, vendem os nossos ativos, as minas, fontes, gás, em liquidação. O que fazem então os políticos? Eles não fazem mais nada.

    Vale para todos, com exceção dos verdes. Então, não admira... Os políticos viraram só outro cartel de interesses. Ambos os lados, após a [Segunda] Guerra, concordaram que precisávamos do Estado de bem-estar social, educação pública, saúde pública: eram as coisas que os políticos estavam lá para entregar. Mas eles não veem mais isso como sua responsabilidade.

    O sr. planeja escrever disso?

    Provavelmente vou. Mas escrevi sobre a crise financeira e, obviamente, aquilo foi implicitamente político, o fato de que, de algum jeito, os bancos escaparam com uma chantagem dupla. Primeiro destruíram a economia britânica e então disseram, "A menos que nos seja permitido continuar fazendo o que fizemos, nós não vamos conseguir tirar vocês disso" [risos]. E os políticos permitiram.

    "Skylight", outra remontagem, também une o pessoal e o político. Por que essas suas peças são tão duradouras?

    Peças em geral não lidam com os movimentos da história. Mas eu acredito que você não pode ser um dramaturgo se não tentar combinar o que acontece historicamente com o que acontece nas vidas individuais. Dentro do específico, você pode encontrar metáfora. Eu escrevo sobre o específico e tenho esperança de que a relevância de cada uma dessas coisas, das peças, fique clara. Que elas são enraizadas na história.

    Quando preparavam "As Horas", o sr. e o diretor Stephen Daldry souberam do suicídio da autora inglesa Sarah Kane. Isso influenciou o filme?

    Foi muito perturbador que, no momento em que escrevia sobre suicídio literário, alguém que conhecíamos e era uma grande figura literária se matou. Foi um terrível choque pessoal, que afetou o que eu estava escrevendo sobre o suicídio de Virginia Woolf. E obviamente há um padrão de suicídio literário feminino, aquele desespero lancinante. Tudo o que eu e Stephen fizemos em "As Horas" foi tentar honrar aquele acontecimento, fazer o filme digno do desespero gerado.

    Seus filmes recentes, de espionagem, não saem da sua trilha usual, no teatro e no cinema?

    Bem, não acho que exista qualquer trilha usual. E há um lado político nos três filmes, "Page Eight" [2011], "Salting the Battlefield" e "Turks & Caicos" [ambos de 2014]. Eles são sobre aquilo de que falávamos, aquela sensação de impotência. Sobre pessoas que ainda tentam se comportar decentemente quando ninguém se preocupa em fazê-lo. Esse é o encanto do personagem Johnny Worricker, a razão por que as pessoas o amam. É como um velho pistoleiro num filme de cowboy, tentando fazer o bem num mundo que não está mais interessado em fazer o bem.

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