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    crítica

    Com menções diretas à política do Brasil, peça faz boa análise social

    GUSTAVO FIORATTI
    COLABORAÇÃO PARA A FOLHA

    06/05/2015 02h24

    Criada a partir de um ponto nebuloso na história recente da política brasileira –o assassinato, em 2002, de Celso Daniel, prefeito de Santo André pelo PT–, a peça "Abnegação II "" o Começo do Fim" se vale de um daqueles personagens heroicos e de valor mítico que nos amarram ao desespero de pressentir um sacrifício.

    Segunda parte de uma trilogia do grupo Tablado de Arruar (com texto de Alexandre Dal Farra, que divide a direção com Clayton Mariano), a peça não recusa formatos tradicionais. Aprofunda-se nas técnicas de roteiro e forja um perfil maniqueísta, o que é feito, em boa medida, na circunscrição de uma linguagem pop.

    Tem como eixo a compreensão de uma cultura machista aprisionada em um sistema vicioso, com um político que recusa o enriquecimento de colegas dentro de um partido político. As bases da história são formadas por relações de poder determinadas pelo dinheiro e pelo sexo, o retrato de um hedonismo capitalista tacanho, portanto, com personagens que falam bastante de seus pênis, por exemplo.

    Lenise Pinheiro/Folhapress
    A atriz Alexandra Tavares como personagem de 'Abnegação 2'
    A atriz Alexandra Tavares como personagem de 'Abnegação 2'

    A peça tateia desta forma a compreensão de um novo Brasil, que carregaria no DNA a cultura dos coronéis mas teria ao fundo as paisagens urbanas, mais complexas, mais ardilosas, assim como a sofisticação da corrupção pelos humildes-entre-aspas, a ostentação e a perda da inocência.

    Os tipos são construídos a partir de menções mundanas e mais diretas sobre a política brasileira, o que o teatro tem recusado (talvez por medo de censura judicial). Não é difícil compreender sua inspiração: os conflitos ideológicos dentro do PT.

    O espetáculo tem essa qualidade de criar um universo mítico a partir de uma realidade muito próxima, ainda latente e capaz de mudanças, como se a arte se dispusesse a um efeito imediato.

    Na peça, o lado mais fraco é naturalmente o dos homens bons, que operam para sustentar um desejo utópico e que não vão abrir mão dos sonhos. O lado forte são os que se fragilizaram pela própria renúncia, e que se encorpam formando um grupo.

    A briga é boa e vai habitar um cenário formado por uma lona estendida de forma precária no piso, como um grande saco de lixo pronto para embrulhar conflitos íntimos.

    Eis um calcanhar de aquiles. Com personagens convictos de suas posições, a peça apenas esboça conflitos íntimos, e nessa criação em específico eles pareciam mais necessários, um investimento deixado de lado e que poderia estilhaçar a dicotomia sobre a qual o texto se constrói tão eficientemente, determinando inclusive diferenças absolutas entre o universo dos homens e das mulheres.

    O espetáculo intercala, ainda, cenas soltas, de assassinatos, traições conjugais, estupros, aparentemente deslocadas deste conflito central. Nelas, personagens sem nomes, como notas de rodapé, desenham desmantelamentos morais provocados pela própria possibilidade do anonimato.

    O resultado é uma caricatura, uma autorrestrição que se explica, no final da peça, por uma espécie de julgamento em que serão expostos o discurso utópico e o impudente.

    ABNEGAÇÃO 2 - O COMEÇO DO FIM
    QUANDO qui. a sáb., às 20h; até 13/6
    ONDE Oficina Cultural Oswald de Andrade, r. Três Rios, 363, tel. (11) 3222-2662
    QUANTO grátis
    CLASSIFICAÇÃO 16 anos
    AVALIAÇÃO muito bom

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