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    Bienal de Veneza 2015 é edição com maior delegação de artistas negros

    SILAS MARTÍ
    DE ENVIADO ESPECIAL A VENEZA

    08/05/2015 02h30

    Um rapaz negro se equilibra na proa de um barco e mergulha no mar num dia de sol escaldante. Enquanto isso, pedreiros cavam o buraco onde ele será enterrado.

    Em seu novo filme, "Ashes", o cineasta Steve McQueen, vencedor do Oscar do ano passado com "12 Anos de Escravidão", opõe esses dois momentos da vida de um jovem e sintetiza o espírito da Bienal de Veneza, exposição que acabou de estrear e segue em cartaz até novembro.

    McQueen é um dos 35 artistas negros numa seleção de 136 nomes da atual mostra italiana, a maior presença negra desde que o mais tradicional evento em torno das artes visuais no mundo foi criado, há 120 anos. Essa é também sua primeira edição comandada por um africano, o nigeriano Okwui Enwezor.

    "Olhando esse garoto lindo, quase pelado, encarando o horizonte, me deu a sensação de ver um resumo da liberdade", diz McQueen. "Mas depois soube que ele tinha sido assassinado e enterrado como um indigente."

    Mais de uma década se passou entre 2002, quando McQueen primeiro filmou seu personagem, o pescador Ashes, em Granada, e o retorno do cineasta agora à ilha caribenha para enterrar o amigo numa sepultura digna, quando concluiu o trabalho.

    Esse foi também o momento em que o terreno para construir essa ambiciosa mostra em Veneza foi sendo pavimentado. E o fato de a bienal ter início na ressaca dos protestos por mais uma morte de um rapaz negro pela polícia dos Estados Unidos aumenta a temperatura de suas obras.

    DEFORMAÇÃO

    "Não é uma exposição feroz, mas tem uma intensidade", diz Enwezor. "Quero revelar os pontos cegos da cultura em que vivemos. É vergonhoso ainda falar do número de artistas negros quando sabemos que a construção da América tem raízes profundas na experiência negra. Vejo uma deformação genética na nossa história."

    Nesse sentido, a mostra de Enwezor ataca essa deformação em duas frentes distintas.

    No Arsenale, antiga fábrica de navios de guerra em Veneza, está uma sequência de obras violentíssimas, como o canhão do italiano Pino Pascali, uma escultura com disparos de metralhadora pelos vietnamitas do Propeller Group e um filme da belga Chantal Akerman, que simula uma fuga desesperada, sob rajadas de balas, num deserto.

    Nos Giardini, a segunda e um tanto mais calma parte da Bienal, a leitura por atores dos três volumes de "O Capital", de Karl Marx, serve de âncora para as peças.

    Numa arena toda vermelha, espécie de coração do pavilhão, acontecem sessões de leitura do clássico que deu origem ao pensamento socialista. Enquanto uma atriz explicava o conceito de mais valia, lendo até as notas de rodapé, o artista Isaac Julien seguia tudo da plateia.

    Também negro, o britânico idealizou a série de performances em torno da obra de Marx. "'O Capital' é parte de um quebra-cabeça muito maior, e a crise econômica reavivou o fantasma de Marx", afirma Julien.

    "Queria criar algo com uma energia vital, uma presença coletiva."

    Nas entrelinhas dessa leitura obsessiva, Julien acrescenta um verniz racial à narrativa das desventuras da classe operária, numa performance carregada de ironia.

    "Meu trabalho é político, mas também se interessa pelo cinismo", diz o artista. "Não é estranho haver muitos artistas negros aqui. O que me parece peculiar é a exclusão dessas vozes ao longo das últimas décadas."

    RUÍDO E SILÊNCIO

    Essas vozes, aliás, chegam a Veneza falando em silêncio. Nas primeiras salas do Arsenale estão obras sonoras do americano Terry Adkins, que criou instrumentos que não podem ser ouvidos, como uma pilha de tambores prensados por abafadores.

    Outra obra silenciosa, que serpenteia e quase desaparece entre as colunas do Arsenale, são as peças em tecido de Sonia Gomes, a única brasileira –também negra– na mostra principal em Veneza.

    "Não gostam de falar, mas quase não há negros nas exposições no Brasil", diz Gomes. "Na Bienal, sou uma negra que representa um lugar onde o preconceito existe."

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