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    B.B. King, 'menino do Mississippi', conectava o coração e as pontas dos dedos

    EDSON FRANCO
    COLABORAÇÃO PARA A FOLHA

    15/05/2015 08h35

    Às 18h do dia 22 de março de 2004, B.B. King entrou em um salão no segundo andar de um hotel na zona sul de São Paulo. Ele havia acabado de descer da suíte presidencial, um latifúndio de 250 metros quadrados, com vista para o parque Ibirapuera, banheira com deque e sala de reunião para 12 pessoas. A plateia que o aguardava era formada majoritariamente por jovens estudantes de música, mas também havia músicos maduros. Entre eles, a cantora Angela Maria.

    Com um gesto que parecia uma bênção, King saudou a todos. Sentou-se, colocou a guitarra no colo e começou a explicar o que era o blues. Tocou uma sequência de notas harmonicamente perfeitas, ritmicamente coerentes e cientificamente distribuídas. Depois, executou as mesmas notas, mas alterando a intensidade, dilatando o tempo, arrancando as tábuas da cerca que separa o discurso musical do falado. Na visão dele, é aí que o blues nasce, cresce e ressuscita eternamente.

    É tudo uma questão de jeito. Vale muito mais o "como" do que o "quê". Nas clínicas que ministrava, Barney Kessel (1923-2004), um dos maiores guitarristas da história do jazz, dizia para os alunos estudarem escalas e acordes com dedicação. Por outro lado, os encorajava a, de vez em quando, largar o instrumento, dar uma volta, cheirar uma flor e acompanhar atentamente o voo de uma borboleta. Sem um repertório pessoal de sensações, dizia ele, os anos de estudo podem formar um exímio digitador, mas jamais um guitarrista.

    O talento para transformar pensamentos, casos e sensações em notas faz de B.B. King o dono de uma das mais reconhecíveis assinaturas sonoras da música ocidental. Sua arte se baseia numa conexão quase direta entre coração e pontas dos dedos. O cérebro entra para indicar a tonalidade da canção. Assim, de maneira quase intuitiva, o guitarrista usa o seu fraseado para contar histórias que vem colecionando desde seu nascimento, numa cabana de fazenda no Mississippi, em 16 de setembro de 1925.

    "Ninguém precisa sofrer para tocar o blues", disse King ao grupo de jovens estudantes. Pode não ser necessário, mas ajuda. Apesar do sorriso que dificilmente abandonava seu rosto nas últimas décadas, ele sofreu. E não foi pouco. Quando King nasceu, os EUA estavam prestes a chafurdar na lama da sua mais traumática crise econômica. "Só fui saber o que era a Grande Depressão muito tempo depois de ela ter terminado", disse King a este escriba, durante uma entrevista em 2007. Longe das notícias do mundo, os moradores do vilarejo de Itta Bena só se preocupavam com a safra do algodão e se o salário daria para manter a família alimentada e o lampião aceso. Assim era a vida dos recém-casados Albert Lee King e Nora Ella Farr, quando esta deu à luz Riley King.

    O nome de batismo de B.B. funde duas histórias. Um dos tios paternos se chamava Riley e morreu muito jovem. O pai do guitarrista dizia que o nome também era um agradecimento a um fazendeiro irlandês chamado Jim O'Reilly, para quem Albert dirigia tratores. Foi o fazendeiro que apresentou a futura mãe ao futuro pai do guitarrista. Nas poucas conversas que teve com seu pai, Riley queria saber por que não recebera o distinto "O'" antes de seu nome. Dono de um humor rabugento, Albert respondia: "Você não me parece irlandês". Nove décadas depois, essa é uma das poucas lembranças que o pai deixou na memória do pequeno Riley. Outra, bem mais forte, aconteceu numa tarde de 1929, quando os pais se separaram. Mãe e filho se aboletaram num caminhão rumo a Kilmichael, outro vilarejo no Mississippi. A imagem do pai em pé e desaparecendo numa curva perturbou o sono do jovem Riley pelos anos seguintes.

    Boa parte da família materna morava em Kilmichael. Lá, ele conheceu o bisavô Pop Davidson, um ex-escravo metido a pastor. De dia, pregava o evangelho. À noite, vagava pelas vielas do lugar, montado numa mula, bebendo uísque, brandindo uma espingarda e gritando palavrões. Elnora Farr, a avó, encantava o garoto com o seu talento para transformar em pratos deliciosos as vísceras e restos dispensados pelos patrões. Mas o que ele mais gostava naquele amontoado de cabanas era ouvir as histórias contadas pela bisavó, uma ex-escrava de quem ele não guardou o nome. Apesar da calmaria que reinava na fazenda do branco Flake Cartledge, a bisavó insistia em lembrar que, do lado de fora, havia um mundo em que eram comuns os linchamentos de negros e que havia uns sujeitos encapuzados que tocavam fogo em cruzes.

    Uma história contada pela bisavó ficou especialmente arquivada na memória do garoto. Quando ainda era escrava, ela acompanhou a tragédia de um companheiro de labuta que se engraçou com a filha do dono da fazenda. Às escondidas, o casal se encontrava e se amava. Foram flagrados por um capataz. Escoltado por capangas, o fazendeiro amarrou seu empregado numa árvore e passou a espancá-lo mortalmente. Ainda vivo, teve seu corpo umedecido com querosene. Quando o fazendeiro estava aproximando a tocha do rapaz, chegou a moça, esbaforida. Ela pediu ao pai que parasse e disse que não havia sido estuprada, mas, sim, que amava aquele homem. O pai perguntou o que ela queria que fosse feito: "Não o deixe sofrer, papai. Dê um tiro nele". E essa foi a aula sobre o que era ser negro no Sul dos EUA. Anos depois, o próprio guitarrista testemunhou o linchamento de um negro que havia cometido o pecado de assoviar para uma branca na cidade de Lexington, Mississippi.

    Riley gostava de ouvir histórias, mas não era bom aluno. Tinha disciplina para encarar diariamente a pé os cinco quilômetros que separavam a fazenda da única escola de Kilmichael na época. A instituição tinha apenas um professor, Luther Henson, que acompanhava as crianças do jardim da infância até o fim do ensino médio. Com muita dificuldade, ensinou Riley a ler e a escrever. Mas as aulas iam além disso. Henson assinava jornais do Norte e conhecia a contribuição que negros como Booker T. Washington haviam prestado à cultura americana. Muito antes de Martin Luther King aparecer, o professor já falava de orgulho negro e mostrava o quanto era importante manter a cabeça erguida.

    Todos os domingos, a família ia completa à igreja batista Elkhorn. Riley adorava. Durante os cultos, ele dividia a atenção entre as meninas da sua idade e as palavras do reverendo Archie Fair. Mais do que um pastor comum, ele era um animador de auditório. Permeava os salmos com empolgantes sessões de cantoria e, melhor de tudo, tocava guitarra. Percebendo a paixão do garoto e tentando manter as mãos dele ocupadas —Riley já havia levado umas palmadas por assediar suas companheiras de oração—, o reverendo ensinou a ele os alicerces do blues. No pouco tempo livre, entre a escola e a lavoura, ele adorava passar na casa de sua tia Mima. Amante das cantoras fundamentais do blues, como Bessie Smith e Ma Rainey, ela era a única pessoa da família que tinha uma vitrola. Nos discos da tia, Riley começou a descobrir o que queria da vida ao ouvir a música de Blind Lemon Jefferson e Lonnie Johnson.

    Durante os invernos no Mississippi, o volume de trabalho caía a ponto de os fazendeiros não estrilarem caso seus subordinados recebessem visitantes. Eram temporadas especialmente felizes para Riley, pois Bukka White, primo da sua mãe, aparecia. Ele já tinha discos gravados e era um típico bluesman. Trajava ternos de linho bem passados, chapéus estilosos e sapatos brilhantes. Nas reuniões familiares, ele tocava e hipnotizava Riley com os vibratos que produzia com um cilindro de metal na mão esquerda.

    1972/Divulgação
    O guitarrista, compositor e cantor de blues B.B. King, em parceria com Stevie Wonder, em 1972
    O guitarrista, compositor e cantor de blues B.B. King, em parceria com Stevie Wonder, em 1972

    O menino tentou bastante, mas jamais conseguiu reproduzir a técnica de Bukka sem o cilindro. Mas, o futuro mostraria, aquela frustração ajudou King a desenvolver um vibrato com as mãos que virou o graal de todo pretendente a guitarrista de blues. O tio despertou no menino a vontade de viver daquela música, usar aquelas roupas e, principalmente, morar na cidade de onde o tio vinha e sobre a qual tanto falava: Memphis, no Tennessee. Além de se aprimorar na guitarra, faltava ao embrionário blueseiro sofrer um bocado mais. E o destino cuidou disso: de uma doença não diagnosticada, cega, debilitada e com apenas 25 anos, a mãe de Riley morreu. Ele tinha oito anos.

    Passou a morar sozinho na cabana. Ocupava seu tempo entre a ordenha de 20 vacas, a colheita de algodão, escola e, finalmente, sua primeira guitarra. Graças à generosidade do dono da fazenda, Riley recebeu uma antecipação de salário e conseguiu juntar os US$ 15 necessários para comprar uma Stella na cor cereja. Com mais US$ 0,50, ele encomendou o método de guitarra escrito por Nick Manaloft, que baseava seus ensinamentos na country music. As aulas de música negra continuavam vindo dos discos de tia Mima, dos cultos com o reverendo Fair, da solidão, da pobreza, da falta de alguém para fazer e compartilhar um jantar e, acima de tudo, do desejo de se juntar ao tio Bukka.

    O sonho de ir para o Norte só se concretizou em 1947, quando Riley já havia maturado seu estilo e até faturava uns trocados nas esquinas em volta da igreja. Passou um ano dividindo o apartamento com Bukka até que, por intermédio do tio, conseguiu uma chance no programa de rádio do gaiteiro Sonny Boy Williamson na rádio KWEM. Cantou "Caldonia", composição de Louis Jordan, e arrebentou. O sucesso dessa primeira apresentação abriu as portas das melhores casas da Beale Street, meca do blues em Memphis até hoje. Já em 1948, os moradores da cidade passaram a ter uma dose semanal da música de Riley por meio de um spot de dez minutos na rádio WDIA. Pediram mais, e o rapaz passou a ter um programa de uma hora. Na época, ele era apresentado como Riley Blues Boy King. Depois, eliminaram o primeiro nome, abreviaram o segundo e o terceiro. Nascia B.B. King.

    Em um predinho singelo de tijolos aparentes, distante cerca de 5 km do centro de Memphis, ficava os estúdios Sun. Foi ali, em 1951, que King deixou de ser um fenômeno local. Em sua primeira sessão, gravou um clássico: "Three O'Clock Blues", que permaneceu por três meses no topo do ranking de rhythm and blues da revista "Billboard". O local onde foi feita a gravação só conheceria sucesso similar três anos depois, quando um tal de Elvis Presley passou pela mesma porta. Com o disco tocando de costa a costa nos EUA, King caiu na estrada. Durante as décadas de 50 e 60, raros foram os anos em que se apresentou menos de 300 vezes. "Chegava a fazer 60 shows em 60 dias, em 60 cidades diferentes", lembra. As poucas pausas eram dedicadas ao estúdio e à criação de novos clássicos. O dinheiro começou a entrar. Farto.

    Laszlo Balogh - 26.jul.1996/Reuters
    A lenda do blues B.B. King se apresenta para tropas americanas na basea aére de Tuzla, na Bósnia, em 1996
    A lenda do blues B.B. King se apresenta para tropas americanas na basea aére de Tuzla, na Bósnia, em 1996

    King poderia ter ficado milionário. Mas, em vez de acumular, ele colocou na cabeça que queria montar o maior show de blues do mundo. Comprou um ônibus, e a bordo dele cruzava os EUA acompanhado por até 30 pessoas, entre músicos, auxiliares e motoristas. As roupas que ele tanto invejava agora transbordavam do armário. As noites sem jantar na cabana eram esquecidas em restaurantes caros. Com a mesma velocidade com que eram compradas, suas guitarras desapareciam em camarins, estacionamentos e quartos de hotel. Tudo isso ajudava a escoar cada centavo das fortunas que ele acumulava com shows, discos e aparições no rádio. Mas nada disso foi tão eficiente quanto dois vícios que King manteve a vida toda: mulheres e jogo. Ao longo dos anos, o guitarrista teve 15 filhos com 15 mulheres diferentes, e não há cassino em Las Vegas sem suas digitais nas fichas.

    Para cada nova despesa, King gravava outro sucesso. "Sweet Sixteen", "How Blue Can You Get", "The Thrill Is Gone" e "There Must Be a Better World Somewhere" mantiveram o passado de pobreza distante. Mais do que dinheiro, suas canções lhe deram prestígio e encheram a sua sala de troféus e homenagens. Ele ganhou sete Grammies. Foi agraciado mais de duas dezenas de vezes pela revista "Downbeat" e cinco pela "Guitar Player". Democrático, recebeu uma medalha de mérito artístico do republicano George Bush pai em 1990 e foi convidado para se apresentar e passar o Natal de 1993 com o casal democrata Bill e Hillary Clinton. Em dezembro de 2012, tocou uma versão de "Sweet Home Chicago" com Barack Obama nos vocais. Ecumênico, tocou no Vaticano em 1997 e presenteou o papa João Paulo 2º com uma de suas guitarras. O menino que mal conseguia ler agora é doutor honorário em quatro universidades americanas.

    Quando já cogitava uma aposentadoria, em 1989 ele ganhou o prêmio de melhor clipe da MTV ao gravar "When Love Comes to Town" com o grupo irlandês U2. E isso trouxe a música do guitarrista para um novo público, que se juntou aos velhos fãs para manter cheias as casas onde ele se apresentou até o dia em que não pôde mais. Quando a hora chegou, o "rei do blues" não tinha do que se queixar em termos de homenagens e honras. Em 2005, o governador Haley Reeves Barbour assinou o documento que determina que todo 15 de fevereiro é Dia de B.B. King no Estado do Mississippi. Raríssimos mortais estavam vivos quando esse tipo de coisa aconteceu.

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