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    Quatro africanos são finalistas do Man Booker International; feito é inédito

    ANGELA BOLDRINI
    DE SÃO PAULO

    19/05/2015 02h00

    Pela primeira vez desde a criação do Man Booker International, em 2005, quatro escritores africanos estão entre os dez finalistas do prêmio literário britânico, cujo vencedor será anunciado nesta terça-feira (19).

    Nas demais edições, de 2005 a 2013, apenas outros três autores do continente concorreram: em 2005, o egípcio Naguib Mahfouz (1911-2006), ganhador do Nobel de 1988; em 2007, o nigeriano Chinua Achebe (1930-2013), único a ser laureado; e em 2009 o queniano Ngugi wa Thiong'o, que vem neste ano à Flip (Festa Literária Internacional de Paraty).

    Na edição 2015, estão na lista o congolês Alain Mabanckou, o líbio Ibrahim Al-Koni, a sul-africana Marlene van Niekerk e o moçambicano Mia Couto. Vêm de Áfricas bem diversas. Apenas Mabanckou é negro. O tuaregue Al-Koni é expoente da literatura magrebina, e os outros dois, brancos, descendem dos antigos colonos.

    A exigência para concorrer ao prêmio, que bienalmente dá 60 mil libras (R$ 283 mil) a um autor pelo conjunto de sua obra, é que o escritor tenha livros lançados em inglês.

    A presença dos quatro –que escrevem, respectivamente, em francês, árabe, africâner e português– evidencia assim um aspecto das literaturas africanas, que começam, segundo Mabanckou, a sair do "gueto": seu caráter "de exportação".

    "Os autores da África francófona têm de publicar na França ou na Bélgica", afirma o congolês à Folha, da Califórnia, nos Estados Unidos, onde mora. Ele teve boa parte de sua obra publicada pelas gigantes editoriais francesas Gallimard, L'Harmarttan e Éditions du Seuil.

    "É contra isso que precisamos trabalhar. Não temos livrarias ou editoras, e isso torna tudo mais difícil para os escritores. É sempre preciso imigrar e publicar no exterior," diz ele, cujo romance "Mémoires de Porc-Épic", de 2006, recebeu os prêmios literários Renaudot e "Créateurs sans Frontières" (criadores sem fronteiras), do ministério de relações exteriores da França.

    INTERESSE ECONÔMICO

    A professora da USP Rejane Vecchia, que estuda as literaturas africanas de língua portuguesa, vê com desconfiança a presença dos quatro na lista. "Não há como discutir seu mérito estético, mas essas premiações estão muito ligadas ao interesse econômico dos países hegemônicos," diz ela. "A questão é: quais são os interesses que fazem com que esses escritores, e não outros, ascendam?"

    Já o moçambicano Mia Couto, vencedor em 2013 do Prêmio Camões, o principal da língua portuguesa, e único entre os quatro publicado no Brasil –onde já vendeu 350 mil livros de seus 17 títulos pela Companhia das Letras, segundo a editora–, diz acreditar que a conquista é dos próprios africanos. "Não há, num prêmio destes, um favor, uma condescendência paternalista. E isso é um motivo de orgulho", diz o autor de "Terra Sonâmbula".

    Em artigo para o jornal "The New York Times" intitulado "African books for Western eyes" (livros africanos para olhos ocidentais), a escritora nigeriana Adaobi Tricia Nwaubani, 39, escreveu que, embora cada vez mais proeminente no cenário internacional, a literatura do continente ainda é pautada pelo interesse de europeus e americanos.

    "Vozes africanas contemporâneas estão finalmente contando histórias africanas, mas só as que estrangeiros nos deixam. Editores em Nova York ou Londres decidem quais das nossas histórias serão apresentadas ao mundo."

    Segundo Nwaubani, autora do livro "I Do Not Come to You by Chance" (eu não venho até você por acaso), é comum publicar antes no exterior que em seu próprio país, mesmo que haja editoras.

    Na Nigéria, afirma, os poucos editores tradicionais preferem publicar livros que já tenham tido sucesso na Europa ou nos Estados Unidos em vez de apostar em talentos locais desconhecidos –problema que, segundo Vecchia, ocorre em outros países.

    Mabanckou afirma que, embora mais presente, a ausência de traduções –para o inglês, principalmente– prejudica o reconhecimento das obras das literaturas africanas.

    "Se você escreve em inglês, a língua comercial, está bem, mas se escrever em outra língua, como o português, ou o iorubá, quase não será lido."

    Que o diga outra indicada, Niekerk, cujos livros, inclusive sua obra mais famosa, "Triomf", de 1994, sobre uma família branca pobre de Johanesburgo no pós-Apartheid, são escritos em africâner, língua derivada do holandês, oficial na África do Sul e falada apenas por minorias étnicas na Namíbia e em Botsuana.

    "A versão formal da língua está perdendo tração. Há cada vez menos sul-africanos de língua inglesa que falem e escrevam em africâner," diz ela. "No futuro, é possível que os livros tenham primeiro que ser traduzidos para o holandês e só então para o inglês."

    Para Mia Couto, a própria língua é uma das maiores dificuldades para os jovens que desejam se tornar escritores.

    IDIOMA EMPRESTADO

    Segundo a diretora do Centro de Estudos Africanos da USP, Margarida Petter, há pouca literatura em línguas autóctones porque os jovens são alfabetizados apenas nas línguas oficiais –o português, o francês e o inglês, principalmente.

    "É difícil você encontrar um autor africano que escreva em sua língua materna, mas não há um público leitor, e o próprio escritor não tem formação naquela língua," afirma.

    A restrição atinge muitos moçambicanos, segundo Mia –no país, há 43 idiomas vivos, e boa parte da população fala o português oficial apenas como segunda língua.

    "Eles têm de enfrentar a escrita num idioma emprestado, e esse percurso não é fácil."

    *

    O PRÊMIO

    Além dos quatro africanos, a edição de 2015 do Man Booker International tem entre os finalistas o argentino César Aira, a libanesa Hoda Barakat, o indiano Amitav Ghosh, o húngaro László Krasznahorkai, a americana Fanny Howe e a guadalupense Maryse Condé.

    Criado em 2005 pela Fundação Booker Prize (responsável também pela premiação anual homônima, de 1969) e patrocinado desde 2002 pela multinacional financeira Man, o prêmio já laureou nomes como os americanos Philip Roth (2011) e Lydia Davis (2013).

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