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    CRÍTICA

    Álbum de inéditas traz de volta voz doce e triste de Cesária Évora

    FABIO VICTOR
    EDITOR-ADJUNTO DA "ILUSTRADA"

    20/05/2015 02h40

    Cabo Verde é um país minúsculo isolado no Atlântico –juntas, suas dez ilhas vulcânicas na altura da costa noroeste da África correspondem a um quinto de Sergipe, o menor Estado brasileiro–, que, por algum segredo insular, tem uma das mais belas músicas do mundo.

    Figura maior desse cancioneiro, Cesária Évora, morta aos 70 anos, em 2011, tornou-se célebre mundialmente com a ajuda dos franceses, que na virada dos anos 1980 para os 1990 promoveram seus discos e shows e a transformaram na "Diva dos Pés Descalços" (era sempre desse jeito que ela subia ao palco).

    Os brasileiros que tiveram o privilégio de ouvi-la recebem agora um presente, com o lançamento do álbum de inéditas "Mãe Carinhosa", pelo Selo Sesc, reunindo 13 canções gravadas entre 1997 e 2005 que nunca tinham vindo a público –há uma exceção, "Sentimento", que abre o CD e já aparecera, em outra versão, no disco "Nhá Sentimento", de 2009.

    Quando morre uma estrela musical, é natural (para os produtores) e desejável (para os fãs) que se busque material desconhecido com vista a discos póstumos. Às vezes surgem bombas; noutras, pepitas de ouro. "Mãe Carinhosa" está mais próximo da segunda categoria.

    Certamente não é o melhor de Cesária –sobras nunca são–, mas é a boa música cabo-verdiana na voz de sua maior intérprete, o que basta.

    Seu timbre a um só tempo doce e poderoso espalhou pelo mundo os dois principais gêneros do país, a morna, mais lenta e melancólica, em geral acompanhada por um piano, e a coladeira, mais alegre e dançante, que guarda algo de samba de roda ou choro –o uso do cavaquinho reforça a familiaridade.

    Os dois gêneros estão bem representados em "Mãe Carinhosa". Entre as mornas, destaque para "Dor di Sodade" (de B. Leza, maior compositor do país, morto em 1958), "Caboverdeanos D'Angola" e "Sentimento". Das coladeiras sobressaem "Tchon de França" e "Essência D'Vida".

    Em todas elas, para além da música, o ouvinte brasileiro pode se deleitar com uma espécie de cabra-cega linguística. Embora o português seja ainda o único idioma oficial do país, a música costuma ser cantada em crioulo cabo-verdiano, mescla do português com línguas africanas.

    Em Cesária, 100% delas. Ouvimos a todo instante versos do tipo "Quem tem sê ôie mau tra'l d'nôs/ Nô ca tem mal na coraçon/ Nôs é um conjunto sem rival/ Na mundo ca tem ôte igual" (em "Quem Tem Ódio", sobre a rivalidade entre dois grupos carnavalescos de Mindelo, cidade natal de Cesária).

    Mora aqui um dos fascínios da música de Cabo Verde: a familiaridade estranha, a insinuação de uma mensagem que desconfiamos compreender, mas nunca apreendemos por completo, senão pela potência rítmica e melódica e pela magia dos maravilhosos arranjos acústicos.

    Por sua melancolia, a música cabo-verdiana, em especial a morna, costuma ser comparada ao fado português ou ao blues americano. Mas talvez, com sua tristeza contida, seja parente mais próxima do nosso choro.

    Ouvir Cesária é como mergulhar num Carnaval triste.

    Sentimento

    MÃE CARINHOSA
    ARTISTA CESÁRIA ÉVORA
    LANÇAMENTO SELO SESC
    QUANTO R$ 20 (CD)

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