• Ilustrada

    Friday, 03-May-2024 01:20:09 -03

    CRÍTICA

    Escritor José Luís Peixoto traz vida e morte a cada página de 'Morreste-me'

    RODRIGO GURGEL
    ESPECIAL PARA A FOLHA

    30/05/2015 02h40

    Passados quinze anos do seu lançamento, "Morreste-me", obra que inaugurou a carreira do português José Luís Peixoto, é finalmente publicada no Brasil.

    Não há ironia no fato de um livro dedicado à morte corresponder ao nascimento público do escritor, pois essa elegia, escrita com solenidade e contido lirismo, é também celebração da vida para o sobrevivente que carrega a memória como "vingança", como afronta ao mundo que pisoteia sua saudade.

    À "mágoa indiferente deste mundo que finge continuar", o narrador oferece sua resposta: "Pai. Tudo o que te sobreviveu me agride. Pai. Nunca esquecerei".

    Divulgação
    Literatura: o escritor português José Luis Peixoto, que virou guia da Coreia do Norte, posa para foto, na Coreia do Norte. (Foto: Divulgação) ***DIREITOS RESERVADOS. NÃO PUBLICAR SEM AUTORIZAÇÃO DO DETENTOR DOS DIREITOS AUTORAIS E DE IMAGEM***
    O escritor português José Luis Peixoto, que virou guia da Coreia do Norte, posa para foto, na Coreia do Norte.

    ESCOLHAS LINGUÍSTICAS

    Dividida em quatro partes, a narrativa serve como guia, no Brasil, para recuperação da nossa sintaxe, crescentemente depauperada desde a Semana de 22.

    Crítica, aliás, que Manuel Bandeira fez ainda na década de 1920, na crônica "Um caso à parte", na qual recomenda o retorno urgente à "sintaxe lusíada" e afirma que o "modernismo era suportável quando extravagância de alguns".

    Com a inusitada forma pronominal do verbo "morrer", José Luís Peixoto submete o idioma à dor e nos relembra que a morte nunca se restringe ao outro.

    O autor reconstrói a força da língua portuguesa, como neste trecho, em que a luz enceguece: "Na berma da estrada, entre extensões amarelecidas de mato e cardos secos, entre searas gigantes de trigo, rompem ervas corajosas poucas, rompem papoilas que do fogo sangue das suas chamas ateiam o louro, o áureo".

    SEM OBVIEDADES

    Só um narrador consciente dos antagonismos que a passagem do tempo esconde poderia fazer com que morte e vida se defrontassem a cada página, num movimento incessante anunciado com perplexidade desde o início: "Regressei hoje a esta terra agora cruel. A nossa terra, pai. E tudo como se continuasse".

    Recusando obviedades estéticas, Peixoto elabora uma narrativa cujo luto cerrado esconde cuidadosa composição.

    Veja-se, por exemplo, na Parte 2, como a ideia de movimento migra do automóvel à busca empreendida pela memória. E, linhas depois, se materializa na viagem noturna do carro funerário – para, a seguir, tornar-se presente nos avanços e regressos do narrador que, ao volante, ruma na direção do passado: "["¦] Cada quilômetro em frente é um mês que recuo".

    Avançamos, sofremos e retornamos à vida com esse narrador que se impõe por não temer a "dor oceânica", por falar dela sem pieguice. Ele também nos seduz porque, na contramão da literatura atual, tem ousadia para, sem niilismo, falar da desesperança; e, sem chavões psicanalíticos, chorar a ausência paterna.

    MORRESTE-ME
    AUTOR José Luís Peixoto
    EDITORA Dublinense
    QUANTO R$ 29,90 (64 págs.)
    AVALIAÇÃO bom

    Fale com a Redação - leitor@grupofolha.com.br

    Problemas no aplicativo? - novasplataformas@grupofolha.com.br

    Publicidade

    Folha de S.Paulo 2024