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    Ópera 'Cubanacán' imagina época em que Fidel e Che comparavam tacadas de golfe

    MICHAEL COOPERMAN
    DO "NEW YORK TIMES", EM HAVANA

    30/05/2015 02h00

    Um tenor cantou o papel de Fidel Castro. Che Guevara era um barítono. O ensaio de ópera aconteceu ao ar livre, com o tenor e o barítono jogando uma partida de golfe, brandindo tacos comicamente grandes e cantando sobre Eisenhower, Kennedy e suas tacadas.

    "Construímos a mais bela cidade das artes no Country Club", cantou Roger Quintana, o jovem tenor que faz o papel de Fidel Castro -o autor da ideia de converter o campo de golfe, um símbolo forte da riqueza e dos excessos anteriores à revolução, em um complexo de escolas livres de artes.

    Talvez soe como a fantasia de um libretista, mas, neste caso, trata-se de mais ou menos a verdade. Em 1961 os dois revolucionários, de uniforme militar, botas e boina, foram ao campo de golfe em espírito de brincadeira para jogar algo que Fidel descreveu uma vez como "um esporte para ricos ociosos". E Fidel realmente converteu o mais sofisticado clube de campo de Havana em um complexo de escolas de arte, embora isso não tenha sido feito exatamente como ele planejou. Algumas das construções ficaram inacabadas; foram abandonadas, decaíram e foram invadidas pelo mato. Outras foram abertas, e a nova ópera "Cubanacán: A Revolution of Forms", de um libretista americano e compositor cubano, teve sua estreia no próprio local na quinta-feira (21), durante a Bienal de Havana.

    Retratar Fidel Castro como personagem de ópera é uma ousadia, em um país onde a liberdade de expressão é restrita e as discussões sobre as liberdades artísticas e seus limites são tão antigas quanto a revolução. Pouco mais de meio século atrás Fidel resumiu sua posição sobre os direitos dos artistas quando disse: "Dentro da revolução, tudo; contra a revolução, nenhum direito".

    A nova ópera não é um trabalho de "agitprop". Ela não foi composta originalmente para ser apresentada em Cuba. A história que relata é ambígua -a fundação do complexo; a decisão de contratar arquitetos ousados para construir prédios fantásticos, quase surreais para ele, e, finalmente, a decisão tomada por alguns de seus arquitetos de abandonar Cuba. Trata do idealismo utópico dos primórdios da revolução? Do fracasso da revolução em alcançar suas metas? Possivelmente trate de uma mistura das duas coisas, considerando que, enquanto alguns dos prédios estão em ruínas, outros produziram gerações de artistas, incluindo muitos dos que estão trabalhando na própria "Cubanacán".

    "Espero que as reações sejam variadas, e as interpretações também; se for assim, teremos feito nosso trabalho", comentou Charles Koppelman, cineasta de Berkeley, Califórnia, que trabalha sobre a ópera há mais de uma década como libretista e produtor. "Se todo o mundo sair pensando a mesma coisa, então eu terei realmente deixado a desejar. Eu deixei a coisa intencionalmente um pouco misteriosa, um pouco ambígua. Sei que não é uma ópera-documentário; ela toma liberdades com pessoas reais, algumas das quais ainda estão vivas."

    Koppelman disse que em nenhum momento foi instruído a mostrar seu libreto a representantes do governo. O compositor que ele chamou para criar a música é Roberto Valera, 76 anos, uma figura respeitada na música cubana. Valera disse que a ideia de retratar Fidel Castro e Che Guevara em uma ópera pode ter deixado algumas autoridades inquietas -"cubano algum teria proposto uma ideia assim", segundo ele–, mas que ele a defendeu, considerando que a ópera capta um momento fundador de Cuba, logo após a revolução.

    "Esta ópera precisa refletir aquele momento de entusiasmo criativo que vivemos no início dos anos 1960", ele observou, notando que esse período foi marcado também pela criação do Balé Nacional de Cuba e da Orquestra Sinfônica Nacional de Cuba, sem falar em uma abrangente campanha de alfabetização.

    A ópera seria apresentada sobre um palco temporário erguido diante das arcadas da Escola de Artes Visuais, cujos domos voluptuosos e fonte central foram projetados pelo arquiteto Ricardo Porro, morto no final do ano passado, para evocar a anatomia e sexualidade feminina. No interior da escola, o clima era de agitação nos ateliês onde pintores e gravuristas preparavam suas obras para a Bienal. Do outro lado do gramado, estudantes de música praticavam arpejos na antiga sede do clube de golfe. Mas a pouca distância dali, outros prédios do complexo, parte do Instituto Superior de Arte, estão incompletos e decrépitos; sua construção foi interrompida em meados dos anos 1960 e nunca retomada. Na época, o embargo americano de Cuba dificultava a obtenção de materiais de construção. Os recursos escassos foram dedicados a finalidades mais urgentes, e Cuba se alinhou mais estreitamente com a União Soviética, que defendia formas arquitetônicas bem menos fantasiosas.

    Um complexo teatral murado, de aparência medieval, é chamado pelos estudantes de Elsinor, devido à personagem Elsinore de "Hamlet". O lugar estava vazio, invadido pela vegetação. Ali perto, cabras pastavam diante do prédio inacabado da escola de música, uma estrutura serpentina às vezes descrita como "Minhoca". E um grupo de estruturas de tijolo com domos e pavilhões ao ar livre, lembrando um set de um filme de George Lucas, estava vazio. A intenção original era que o lugar fosse uma escola de balé; foi usado por algum tempo como escola de circo.

    Koppelman se interessou pelo tema depois de assistir a uma mostra sobre as escolas de arte apresentada em San Francisco por John A. Loomis, professor de design de interiores na San Jose State University, e ficar intrigado com a leitura do livro de Loomis, "Revolution of Forms: Cuba's Forgotten Art Schools" (Revolução de formas: as esquecidas escolas de arte de Cuba).

    "Quanto mais eu lia, melhor a história me parecia", ele recordou. "Um campo de golfe, mais Fidel e Che -era muito bom. Normalmente, penso: 'Como fazer um filme com isto?'. Mas depois de um só capítulo do livro, pensei: é uma ópera. É uma ópera: as escolas -música, dança, teatro, belas-artes. Figuras icônicas. Uma época histórica importantíssima."

    Koppelman entrou em contato com Loomis e o consultou sobre a possibilidade de transpor o livro para uma ópera. "Achei que Charles era um desses maluquinhos de Berkeley", Loomis recordou. "Achei a ideia absurda -ele nunca antes tinha criado uma ópera. Mas ele foi incrivelmente persistente."

    Essa persistência agora está rendendo frutos. Uma orquestra de 54 instrumentistas, um pequeno coral e um elenco de jovens cantores cubanos preparou-se para encenar a ópera sob a direção de Charles Chemin, americano de origem francesa recomendado para o trabalho pelo diretor Robert Wilson.

    A música alterna ritmos cubanos com trechos operísticos de viés moderno. No final, Roberto Valera, o compositor, disse que, para ele, a história vai destacar a importância e perseverança das escolas, onde ele próprio leciona desde 1968.

    "Apesar de todas as dificuldades, aqui nesta escola formamos mais de 90% dos artistas cubanos mais importantes em todas as artes: música, belas-artes, teatro, dança", disse Valera. "De uma maneira ou de outra, 90% deles passaram por aqui."

    Tradução de PAULO MIGLIACCI

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