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    Musical 'S'imbora' traz os hits e o inferno de Wilson Simonal

    NELSON DE SÁ
    DE SÃO PAULO

    11/06/2015 02h25

    Após uma trilogia de musicais biográficos, o escritor, letrista e jornalista Nelson Motta quer mais do teatro.

    "S'imbora, o Musical" estreia nesta quinta (11) em São Paulo, vindo do Rio, e o agora dramaturgo já está às voltas com o próximo, não mais biográfico. "Dancin' Days" será sobre a sua lendária discoteca, no Rio de 1976.

    E não é só. Motta, 70, planeja uma peça nos moldes do que "chamavam antigamente de teatro declamado, que é o teatro teatro, com personagens, palco italiano". Algo dificílimo, descreve, "mas um desafio que me faço, porque musical já sei como é que é".

    Ele escreveu sozinho "Tim Maia", cujo sucesso em 2011 levou à febre de espetáculos biográficos. Depois, com Patrícia Andrade, fez "Elis, a Musical", "S'imbora" e prepara "Dancin' Days". Mas não é um fã de musicais, não os da Broadway, ao menos.

    "Minha implicância com a Broadway é que, com exceções, Stephen Sondheim entre elas, acho as músicas chatíssimas. Tem duas, três boas, e o resto é para contar a história", diz, lembrando que foi Paulo Francis (1930-97), que também pensava assim, quem o introduziu ao musical com hits, o "jukebox musical".

    TORTURA

    "S'imbora" é também "jukebox", com sucessos de Wilson Simonal (1938-2000) como "Sá Marina", mas é mais dramático que os anteriores por tratar de personagem histórico questionado pela proximidade com a ditadura.

    "A peça abre na delegacia, o Simonal sendo chamado", diz Motta. "Entra o Carlos Imperial e diz: 'Assim começou a acabar a carreira de uma das estrelas da música'."

    A cena remete à prisão de Simonal nos anos 1970, após ter chamado policiais amigos, do Dops (Departamento de Ordem Política e Social), para torturar seu contador e forçá-lo a falar de supostos desvios. A partir daí, passou a ser visto como informante.

    "Tem tudo", garante Motta, lembrando que seu livro de memórias "Noites Tropicais" (Objetiva, 2000) foi um dos primeiros a resgatarem o episódio. "O segundo ato também abre na delegacia, já tudo provado, que foi tortura, que Simonal é culpado."

    Sobre o cantor, que ele conheceu bem, Motta conclui: "Foi escroto, foi cafajeste, nunca o desculpei por isso. Foi condenado a cinco anos, ficou duas semanas em cana e depois cumpriu em liberdade. É um cara ficha suja".

    "Só que foi enterrado em vida, o que atribuo muito ao racismo, porque foi o primeiro negro popstar no Brasil. Cara rico, carrões, mulheres, eu via a reação que as pessoas tinham. Mas não tinha competência para ser dedo-duro. Ele não sabia de nada."

    Leia, abaixo, trechos da conversa de Nelson Motta.

    *

    Folha - Escrever musical significa escrever diálogo. Como foi a sua experiência em "Tim Maia", "Elis" e "S'imbora"? Foi novidade para você?

    Nelson Motta - Foi uma novidade, nunca havia feito. O que gosto no musical... O musical em si já é uma linguagem artística tão absurda, em que uma história é contada por pessoas cantando e dançando. É a coisa mais anti-realista possível. Na verdade, é uma fantasia musical, sobre a vida de uma pessoa. E no caso de artista quem conta melhor é a obra. Boa parte do sucesso, todas três são grande sucesso popular, é a qualidade das músicas. Parece óbvio, mas para mim o mais importante num musical são as músicas. Tanto no caso do Tim como da Elis como do Simonal, as músicas são um show. São fabulosas, muitas as pessoas já conhecem, então facilita muito. Porque o artista conta muito da sua história através das suas músicas. E os diálogos, as cenas imaginadas, isso é fantasia. Claro, é fantasia baseada na realidade, mas é fantasia. É para divertir, é para emocionar, é para surpreender as pessoas.

    No caso do Simonal, talvez seja o meu melhor trabalho nisso, por causa do personagem. Tem um lado espetacular, é o primeiro grande popstar negro no Brasil. É um cara com uma história muito rápida, um cara criador um estilo. O artista que vi dominar mais um público na minha vida. Nunca mais se viu nada igual, porque ele gostava disso, gostava que o público cantasse junto. Ele era tão marrento que gostava de mostrar o domínio que tinha sobre o público. E me falou uma vez, "Bicho, descobri que o público adora ouvir a si mesmo, então boto eles para cantar". Isso era o Simonal. Em shows, chegava a botar o público cantando uma música lá, saía, tomava um cafezinho, voltava, o público continuava cantando.

    A origem dele é como "crooner", não é?

    "Crooner". Ele fez um intensivão de "crooner" e logo virou estrela, no Beco das Garrafas. E no caso do Simonal a família, o Simoninha, o Max [de Castro] e a Tereza [Pugliesi], liberaram geral. Então a gente escancarou. Contamos tudo. Mesmo porque a história do Simonal já foi aprofundada na biografia do Ricardo Alexandre ["Nem Vem Que Não Tem", ed. Globo, 2009], que é excelente, e no documentário do Cláudio Manoel e do Calvito [Leal, "Ninguém Sabe o Duro que Dei", 2009]. Então a gente tinha bastante material para trabalhar. Para você ter uma ideia, a peça já começa numa delegacia. Então tem tudo. E tem muita coisa de fantasia, de coisas que a gente imaginou para ilustrar cenas reais da vida dele.

    Na delegacia, é o episódio do contador?

    Claro, claro. O primeiro ato abre com essa cena na delegacia, o Simonal sendo chamado a depor. Entra o Carlos Imperial, que funciona como um narrador, do começo ao fim. Ele faz críticas ao Simonal, é amigo do Simonal, é cúmplice do Simonal e vai narrando a história, porque, é verdade, foi o Imperial que lançou o Simonal. O Imperial era o rei daquela época. Na cena da delegacia, o Imperial diz, "Assim começou a acabar a carreira de uma das maiores estrelas da música brasileira. Que começou no meu programa de TV...". E o segundo ato abre na delegacia já brabeira, já tudo foi provado, que o contador foi torturado, que o Simonal é culpado. E ele indo preso. Então tem tudo.

    Qual é a sua conclusão sobre o personagem histórico?

    Fui a primeira pessoa a tocar no assunto Simonal, no meu livro "Noites Tropicais", porque até então não se sabia nem se estava vivo ou morto. Era tabu, ninguém falava, nem para falar mal dele. E eu contei a história do contador, com os detalhes, entrevistei algumas pessoas. O Simonal era um item ali, entre dezenas de artistas. Foi daí que o Cláudio Manoel teve a ideia de fazer o documentário, aprofundou mais, aí teve a biografia. Mas essa redescoberta começou no meu livro. E já na época eu dizia e continuo sustentando: o Simonal foi escroto, foi cafajeste, ele tinha amigos no Dops. Em vez de chamar um advogado ou uma auditoria, ele estava tão "se sentindo", tão poderoso, que fez essa cagada. Eu nunca o desculpei por isso. Ele pagou por isso, foi condenado a cinco anos, ficou duas semanas em cana e depois cumpriu em liberdade. É um cara ficha suja, condenado.

    Só que ele foi enterrado em vida, o que atribuo muito ao racismo, à inveja, ao preconceito, porque foi o primeiro negro popstar no Brasil. Cara rico, marrento, ele andava de carrões, com grandes mulheres, e eu via a reação que as pessoas tinham, "Esse crioulo!". As pessoas ficavam com ódio do Simonal. Era um primeiro crioulo americano, tinha uma outra atitude e isso trabalhou muito contra ele. Mas o Simonal não tinha competência para ser dedo-duro. Ele não sabia de nada. Era um bobalhão, só queria ganhar dinheiro, comer a mulherada, comprar carrão. É o precursor da MPB ostentação. E pagou por isso. Ele não tinha competência porque não sabia de nada. Imagina se em alguma reunião, como havia muitas para atos contra a ditadura, eu fui a milhares de reuniões artísticas, imagina se alguém falava em chamar o Simonal? Os caras iam rir, "Esse é um idiota, um alienado."

    E aquela canção para Martin Luther King, como ela se encaixa nesse Simonal?

    Ele sofreu bastante com racismo. Para ele era uma coisa importante, séria. A letra é do Ronaldo Bôscoli, um cara que tinha convicção zero sobre qualquer assunto. Mas a música é boa, uma ótima música, "Tributo a Martin Luther King". É de 1967, por aí. A desgraça dele é 71.

    Você também é letrista, é conhecido na música brasileira como letrista. Pensa em fazer um musical com composições próprias?

    Fazer com repertório original?

    É. Sondheim começou como letrista e até hoje se diz um letrista.

    É, ele é basicamente um letrista genial. Eu acho o seguinte: é complicado para um compositor, por mais talentoso que seja, criar canções tão boas quanto as que tem em "Elis". São os maiores compositores do Brasil. Tem rock, tem samba, tem sertanejo, "Romaria", tem de tudo, tem Bossa Nova, Tom Jobim. Quem poderia fazer? É difícil. Para o letrista já é mais fácil fazer todas as letras, porque ali tem uma função narrativa. Um trabalho, digamos, braçal: o cara fazer as letras e contar a história. A minha maior implicância com musicais da Broadway é que, com exceções, claro, o Sondheim entre elas, geralmente as músicas são chatíssimas. Tem duas, três boas músicas e o resto é para contar a história. O meu teatro musical é muito mais musical que teatro, porque sou um cara de música e estou aprendendo a escrever para teatro. Eu tenho vontade de escrever uma peça, sem ser um musical.

    Sobre?

    Tenho umas ideias. Teatro teatro, teatrão, personagens, palco italiano. É superdifícil, é dificílimo.

    Você pode adiantar como seria essa peça?

    Ah, não. Estou pensando, porque é um grande desafio. Eu gosto de trabalhar em coisas que não conheço. Fiz biografias, fiz romances, aí já aprendi um pouco aqui e quero ficar nervoso... Comecei a escrever musicais há quatro anos, então agora o desafio é o chamavam antigamente de teatro declamado. Tinha o teatro musical e o teatro declamado, que é o teatro teatro, o ator e a palavra. É um desafio que me faço, porque musical eu já sei como é que é, aí você vai se repetindo.

    Nas décadas em que você foi principalmente letrista, em música, alguma das suas letras foram para musical? Foi uma época em que Chico Buarque escreveu muito para musical, Edu Lobo, outros.

    Para você ver, falando em musicais originais, o Chico Buarque fez a "Ópera do Malandro". Aquilo é uma coisa assombrosa. É uma raridade. É o Chico, um cara de exceção. Ele é letrista e músico, e um músico fabuloso, embora tenha subestimado às vezes, um músico à altura do letrista. Na "Ópera do Malandro", todas as músicas são boas. Musical musical, mesmo, só tem esse.

    "Roda Viva"?

    Não, "Roda Viva" não. Muito fraco. Era uma coisa de iniciante. Tem músicas boas, mas a história é superconfusa. Ele mesmo não libera a representação do "Roda Viva" porque acha muito ruim.

    Você conviveu com Paulo Francis, que acompanhava o teatro musical, na Broadway, constantemente. Aquilo influenciou, de alguma maneira?

    Bastante, bastante, porque o Francis, progressivamente, foi detestando musicais da Broadway. Ele gostava, claro, do Cole Porter, do Sondheim. Mas ele falava supermal, dizia que a Broadway era uma coisa feita para jeca americano. E é mesmo. Os musicais da Broadway dependem basicamente do público de turismo interno, que vem do interior, aquele americano médio que vai lá. É uma tradição de cem anos, e o Francis debochava disso. Mas uma vez ele me falou, tinha ido a Londres [imita Francis], "Vi um musical interessantíssimo". Não me lembro o que era, mas era uma história contada através de músicas já conhecidas. Então ele falava, "Pô, as músicas são maravilhosas, porque eles escolheram as melhores para contar uma história, música já testadas". Isso ficou na minha cabeça. Eu sempre me lembro disso, na hora de escolher os assuntos e as coisas para os meus musicais.

    Você já tem uma trilogia.

    É, já está bom. O próximo que vou fazer é o "Dancin' Days". É a história da discoteca Dancin' Days, com a Patrícia também.

    Você participou da novela também, de alguma maneira?

    Não, só vendi o nome para a TV Globo, da minha discoteca. O musical não tem nada a ver com a novela. É só durante os quatro meses em que durou a discoteca Dancin' Days. É a história das Frenéticas, da chegada da "disco music" no Brasil. E é a minha história ali, eu e meus amigos que fizemos o Dancin' Days, contando como foi. É uma típica comédia musical.

    Você vai ser personagem?

    Ah, nesse eu sou dos personagens principais. Sou o dono da boate! [risos]

    Vai ser o primeiro não-biográfico, embora um pouco autobiográfico.

    [risos] É, porque ali no Dancin' Days éramos eu, o dono; o Leonardo Netto, que hoje é empresário da Marisa Monte, da [Adriana] Calcanhotto, famoso empresário; o Djalma Limongi, que era o cara administrativo, um excelente personagem; e o Don Pepe, que morreu no ano passado e era um cara genial como personagem e como DJ, um dos primeiros DJs do Rio de Janeiro a se tornar popular, ter uma marca. E As Frenéticas, claro, vamos contar a história de como surgiram As Frenéticas.

    S'IMBORA, O MUSICAL - A HISTÓRIA DE WILSON SIMONAL
    QUANDO qui. a sáb., 21h; dom., 19h. Estreia 11/6
    ONDE Teatro Cetip - r. Coropés, 88, tel. (11) 4003-5588
    QUANTO R$ 50 a R$ 180

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