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    Ernesto Neto leva obra inspirada em rituais de ayahuasca a Viena

    LUCAS NEVES
    COLABORAÇÃO PARA A FOLHA, EM VIENA

    29/06/2015 02h15

    A interpretação dos sonhos como exercício para revelar mecanismos de repressão e dar pistas sobre o inconsciente é um dos eixos da teoria do austríaco Sigmund Freud (1856-1939).

    Parece justo, portanto, que o artista plástico Ernesto Neto apresente exatamente em Viena a versão mais completa até aqui de um trabalho com índios Huni Kuin (da Amazônia acreana) que começou a partir de um sonho.

    Divulgação
    "Candelabro" de crochê e velas em uma das salas da exposição de Ernesto Neto em Viena
    "Candelabro" de crochê e velas em uma das salas da exposição de Ernesto Neto em Viena

    O pajé Agostinho Manduca Mateus, que repertoriou as plantas usadas por sua etnia em rituais fitoterápicos, imaginou enquanto dormia um "livro da cura", com descrições de 109 variedades. O desejo chegou aos ouvidos do
    Jardim Botânico do Rio e da Dantes Editora, que bancaram a publicação.

    Neto incorpora-se à trama em 2013, ao viajar com a equipe do livro para encontrar os Huni Kuin das margens do rio Jordão. No segundo dia, durante um ritual, experimenta o chá ayahuasca, bebida alucinógena a base de cipó e plantas que ocupa lugar-chave no cotidiano dos índios -e também é usada em cerimônias do Santo Daime.

    "O chá mostra tudo, inclusive o que você está fazendo errado. É psicanálise pura", disse o artista no sábado (27), na entrada da mostra "Aru Kuxipa | Sagrado Segredo". "Mas o meu interesse é sobretudo na subjetividade indígena, no lugar do sonho."

    Conhecido por grandes esculturas de material sintético em que usa formas orgânicas para explorar dicotomias (masculino/feminino, imanência/transcendência, interior/exterior), Neto acha que sempre teve "um lado pajelança, a coisa ritualística". Mas o contato com as tribos o deu a certeza da validade dessa trilha:

    "Esses caras acreditam na alegria. Na arte do Ocidente, é considerado bom aquilo que trata de dor. E eu falo de união, harmonia, tento criar uma bolha para que as pessoas se libertem. Encontrei a filosofia que buscava, achei a minha turma."

    E a convocou para exposições em Bilbao (Espanha), no Instituto Tomie Ohtake e agora na galeria de arte contemporânea TBA21. Ali, oito índios conduzem rituais de cura (inalação de rapé, defumações, ingestão de extratos de plantas, aplicação de colírios e unguentos, cantos) até o começo da próxima semana, numa sala cuja cenografia relê a kupixawa ("casa grande de encontros") dos Huni Kuin: sai a cobertura de palha, entra o crochê intrincado que é outra assinatura de Neto.

    JIBOIA

    Nas laterais, dois bancos de madeira ondulam como a jiboia que é motivo recorrente no imaginário da etnia -inclusive, segundo Neto, nas "mirações" pós-ayahuasca. A serpente já terá aparecido antes, na primeira sala, metamorfoseada na sinuosidade da escultura "A Gente se Encontra Aqui Hoje..." e no zigue-zague de um desenho que embaralha "ad infinitum" as letras "a" (Adão) e "e" (Eva).

    Há ainda um terceiro espaço, em que o "Livro de Cura" é destacado de uma estante que inclui obras de Lévi-Strauss, Eduardo Viveiros de Castro e Derrida, num gesto ambivalente de diálogo e ênfase no valor do saber indígena; e um quarto, coleção de vídeos em que Huni Kuin narram lendas.

    O passeio termina na proverbial lojinha, em que o artesanato dos índios (braceletes, faixas de cabelo, colares, brincos, vestidos, maracas...) a partir de 15 euros (cerca de R$ 52) -valores 100% revertidos, segundo a curadora Daniela Zyman, ao criador de cada peça. Ainda assim, a vitrine bem fornida sugere um risco de fetichização.

    "Eles não se deixam folclorizar", rebate Neto. "Querem que você vire um deles. É como se estivessem trazendo você para o mundo deles."

    Zyman faz coro. "Estamos nos explorando mutuamente; nós a eles, para realizar a mostra; eles a nós, para ganhar reconhecimento internacional e, a partir daí, ter mais recursos para projetos como o do tratamento de água nas tribos. Se fizéssemos tudo sem eles, 'em nome deles', cairíamos na armadilha da antropologia. A ideia era cortar essa mediação, fazê-los falar por si mesmos."

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