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    Retrospectiva de Guignard no MAM apresenta um artista completo

    SILAS MARTÍ
    DE SÃO PAULO

    07/07/2015 02h00

    Na noite fuliginosa de festa junina, igrejinhas brancas surgem na paisagem entre balões coloridos. Tudo pesa toneladas ao mesmo tempo em que se desmancha no ar nas telas de Alberto da Veiga Guignard.

    Um dos maiores mestres da arte brasileira do século 20, o artista construiu uma obra de leveza ambivalente –suas singelas vistas enevoadas parecem nascer de um sofrimento acachapante e indisfarçável.

    Era uma marca que ele trazia no rosto. O lábio leporino, defeito de nascença que tentou corrigir sem sucesso com cirurgias ao longo da vida, aparece em seus autorretratos como o traço definidor de um semblante cindido. Também está no rosto dos Cristos que pintou, sempre aos prantos, martirizados.

    Todas essas dimensões de Guignard aparecem agora numa retrospectiva que o Museu de Arte Moderna paulistano dedica ao artista considerado um dos maiores paisagistas da arte nacional.

    Nascido em 1896 em Nova Friburgo, na serra fluminense, Guignard cresceu na Europa –órfão de pai, ele foi viver em Munique com a mãe, que se casara com um nobre alemão.

    De volta ao país nos anos 1920, viveu no Rio e nos anos 1940 se mudou para Belo Horizonte, onde fundou uma escola de desenho a pedido do então prefeito Juscelino Kubitschek. Mesmo reconhecido em vida, morreu sozinho, de complicações do alcoolismo, aos 66 anos, em 1962.

    Na mostra do MAM, com 70 obras divididas entre galerias para seus retratos, suas naturezas-mortas e as paisagens reais e imaginárias que pintou, Guignard é revisto como um artista completo, longe da fama de naïf que colou nele pela escolha dos assuntos que decidiu retratar.

    LÉA E MAURA

    "Não há nada de naïf ou ingênuo na obra dele", diz Paulo Sergio Duarte, que organiza a mostra. "Ele tinha formação e domínio técnico." Essa destreza aparece com maior nitidez em seus retratos, como o das gêmeas Léa e Maura, filhas de um poderoso senador pernambucano.

    Nesse quadro da década de 1940, as mulheres idênticas aparecem na varanda de sua casa no Rio com uma paisagem imaginária ao fundo. De vestidos também idênticos, elas fitam o observador com uma expressão emudecida, quase um pretexto para seu traçado preciso das linhas.

    Esse é um dado marcante também nos retratos de fuzileiros navais que realizou entre as décadas de 1930 e 1950. Todos negros, mostrados com suas famílias, esses homens foram assunto constante, quase obsessivo, para Guignard.

    "Aqui a linha concorre com a cor", observa Duarte. "Os traços não estão disfarçados, eles aparecem com força." Ou, nas palavras do crítico Paulo Herkenhoff, deixam de ser "vaporosos" como nas paisagens para se aproximarem da caligrafia nessas figuras.

    Não é exagero, aliás, enxergar em Guignard qualquer aspecto caligráfico. Tanto isso quanto a disposição vertical de suas paisagens em que a terra parece se fundir com o céu têm raízes na arte oriental que ele estudou em livros e pôde ver de perto nas décadas em que viveu na Europa.

    MONTANHA D'ÁGUA

    Da "chinoiserie", moda entre artistas europeus que tentavam imitar traços da arte chinesa, Guignard extraiu um mundo à parte, aplicando as transparências e as pinceladas diluídas das pinturas orientais à paisagem mineira coalhada de igrejas barrocas e fogueiras de São João.

    Nesses quadros, que acabaram consagrando Guignard, tudo parece flutuar num plano indistinto e fora de foco, o que os chineses chamam de "montanha d'água", ou seja, quando o horizonte se perde na neblina e o mundo vira um pano de fundo harmônico e etéreo.

    "Ele suspende a consistência das coisas", escreveu o crítico Rodrigo Naves num ensaio sobre a obra de Guignard. "A dissolução que domina sua obra é sofrida, passiva."

    Talvez porque não fosse convidado para as festas que tanto retratava. Guignard padecia da solidão, amargando desastres amorosos em sequência, mas deslocava o sofrimento para suas paisagens.

    Em seus autorretratos, sua figura era quase sempre robusta e assertiva, mesmo com o lábio partido. Sua tristeza e suas consequências mais sinistras, no entanto, transparecem num quadro dos anos 1930 em que ele se retrata como um palhaço com dentes gigantescos à mostra –um atestado da dor que sentia.

    Nesse sentido, Guignard parecia buscar em sua obra uma saída das armadilhas do plano terreno rumo a uma ascese divina, ou ao menos fantástica. Longe da alegria fajuta de suas festas juninas, Guignard arquitetou verdadeiras explosões de cor em suas naturezas-mortas, mais que flertando ali com o surrealismo.

    Num desses quadros, de 1932, um vaso de flores numa mesa aparece flutuando sobre toda a cidade, embaralhando realidade e ficção. Mesmo as plantas ganham ali um aspecto surreal, de coloração vibrante, beirando o lisérgico.

    "Enquanto as naturezas-mortas são pura alegria, as festas são tristes, de aspecto sombrio", analisa Duarte. "Ele retrata um país sem chão."

    Em sua fuga da tristeza, Guignard conquistou fama de santo entre amigos, sempre lembrado como figura bondosa. "Que um de nossos mais importantes artistas fosse visto como um santo diz muito da arte brasileira", escreve Naves. "E que esse santo fosse um alcoólatra inveterado também diz muito do que entendemos por santo."

    ALBERTO DA VEIGA GUIGNARD
    QUANDO abre nesta terça (7), às 20h, para convidados; de ter. a dom., das 10h às 17h30; até 11/9
    ONDE MAM, pq. Ibirapuera, portão 3, tel. (11) 5085-1300
    QUANTO R$ 6; grátis aos domingos

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