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    Com mostra inspirada na violência, Dahn Vo se consagra em Veneza

    SILAS MARTÍ
    ENVIADO ESPECIAL A VENEZA

    12/07/2015 02h04

    "Não acho que pessoas como eu deveriam ser aceitas no mundo da arte. Na maioria dos casos, estou batendo de frente com quem manda nisso tudo", diz Dahn Vo, sentado na escadaria da basílica Santa Maria della Salute, em Veneza. "É um mistério que eu esteja aqui agora."

    Na porta da igreja, o artista vietnamita fala comigo de frente para a Punta della Dogana, museu do bilionário François Pinault, que abriga até dezembro uma exposição organizada por ele. Lá dentro, estão obras de Vo e peças de outros nomes da coleção do francês dono de grifes como Gucci, Balenciaga e Saint-Laurent, além da casa de leilões Christie's.

    Nenhum traço do mundo de luxo e ostentação que sustenta essa operação, no entanto, transparece na mostra. Ali, diante da basílica erguida na ressaca da peste que dizimou a cidade no século 17, Vo criou uma exposição com obras que também refletem chacinas, massacres, doenças e traumas profundos -é um retrato da morte em Veneza.

    Divulgação
    Vista da mostra 'Slip of the Tongue', no Punta della Dogana, em Veneza'.
    Vista da mostra 'Slip of the Tongue', no Punta della Dogana, em Veneza'.

    Ou um autorretrato de Vo. Marcado pela Guerra do Vietnã, que fez sua família se refugiar na Dinamarca em 1975, ano em que ele nasceu e em que acabou o conflito, o artista fez de sua obra um manifesto sobre a fragilidade da vida.

    Mas não escancara isso. "É uma merda que sempre tentem enquadrar meu trabalho como algo autobiográfico", afirma Vo. "Dizem que quando falo da guerra, estou falando dos meus traumas, mas não há nada de pessoal ali. Essa é uma questão geopolítica que tocou milhões de pessoas."

    Na mostra, essa tal questão geopolítica aparece na forma de um enorme lustre na sala principal do museu. Foi debaixo dele, no salão de baile do hotel Majestic em Paris, que vietnamitas assinaram um primeiro –e inútil– cessar-fogo ao conflito.

    Vo retoma essa memória por seu aspecto mais frívolo, ou frágil. Quando soube que o lustre estava à venda, levou o pai ao antigo salão de baile, que ele chamava de "sala da traição", para que visse onde tudo aconteceu.

    "O choque é que quando você entra num lugar desses, você deixa todas as mágoas para trás", diz Vo. "A beleza esconde a política."

    Nesse sentido, muitas das obras na Punta della Dogana rechaçam a ideia de belo. É das mostras mais feias e ao mesmo tempo mais fortes que já vi, em sintonia com a Bienal de Veneza -onde Vo representa a Dinamarca-, que faz um relato catastrófico e desesperançado da atualidade.

    Divulgação
    Vista da mostra 'Slip of the T
    Vista da mostra 'Slip of the T

    Entre taças de champanhe, numa festa que chacoalhou o hotel Bauer, François Pinault me dizia que, de fato, a obra de Dahn Vo reflete a "dureza da existência" e torna visível "a violência da vida como ela é, só que com certa ternura".

    Vo é mesmo um cara meigo. Magro, sempre com um sorriso de orelha a orelha, ele andava por Veneza rodeado de amigos artistas, críticos e colecionadores. Seu jeito dócil contrasta com a carga tétrica de seus trabalhos, mas ajuda a entender como ele caiu nas graças dos nomes mais poderosos das artes.

    Mesmo nas altas rodas, com mostras de peso em museus como o Guggenheim em Nova York e o Stedelijk em Amsterdã, Vo pensa estar arquitetando algo subversivo, como se tentasse implodir o sistema a partir de suas entranhas.

    Tanto que exigiu que Pinault deixasse incluir na mostra obras que não estão na sua coleção pessoal, de artistas como Nancy Spero e Peter Hujar.

    Esse último, aliás, é uma das presenças mais impactantes da exposição com seus autorretratos à beira da morte -o artista definhou e morreu de complicações da Aids em 1987.

    'FRANKENSTEIN'

    Nomes da geração que mais sofreu com a epidemia nos anos 1980 e 1990, aliás, formam um dos núcleos mais fortes da mostra em Veneza. "É triste falar isso, mas esse período gerou os artistas mais fantásticos da história", diz Vo. "Eram todos caras jovens que estavam morrendo, vozes que têm ressonância até hoje."

    Um desses artistas também vitimados pela doença, Felix González-Torres tem uma escultura em Veneza que remete às células de seu sangue contaminado -é uma cortina feita de pérolas de plástico vermelho. Debaixo de uma gárgula esculpida para espantar a peste da cidade, a obra ganha contornos mais densos.

    "Essas associações espontâneas são uma marca do meu trabalho", diz Vo. "Minha obra é um Frankenstein, vai se apropriando das oportunidades e ganhando vida própria."

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