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    Exposição traz a SP preciosidades e mistérios de François Truffaut

    LUCAS NEVES
    COLABORAÇÃO PARA A FOLHA, EM PARIS

    14/07/2015 02h00

    "Você me disse 'eu te amo'
    Eu te disse 'espera'
    Eu ia dizer 'agarre-me'
    Você me disse 'vai embora'"

    O haicai do amor descompassado que abre "Jules e Jim - Uma Mulher para Dois" (1962) anuncia a visão do cineasta François Truffaut (1932-1984) sobre a vida conjugal: a de um bote à deriva, cativo de intempéries insondáveis –e irresistíveis.

    Esse gosto de um dos precursores da nouvelle vague pelo mistério, na ficção e na vida, é justamente um dos gatilhos da exposição "Truffaut: Um Cineasta Apaixonado", concebida originalmente pela Cinemateca Francesa, em Paris, e que desembarca agora no MIS - Museu da Imagem e do Som, em São Paulo.

    "A inclinação dele pela clandestinidade vem da infância", diz o curador da mostra, Serge Toubiana, também diretor da Cinemateca Francesa e biógrafo do cineasta, a quem consagrou ainda um documentário e uma série de programas radiofônicos.

    "Ele via filmes escondido da mãe e do padrasto, matava aula para ir ao cinema. Adulto, mantinha vários roteiristas trabalhando simultaneamente num projeto, sem que uns soubessem dos outros", conta Toubiana.

    "Lembro-me que, para entrar em seu escritório, passava-se por duas portas, que pareciam estar ali para protegê-lo mais do mundo exterior. O secreto e o íntimo eram nele mais importantes do que a vida pública, visível."

    Tanto que, no fim dos anos 1960, contratou uma agência de detetives (onde pouco antes ambientara cenas de seu "Beijos Proibidos") para apurar identidade e paradeiro de seu pai biológico, que nunca vira. Desfeito o enigma –tratava-se de um dentista judeu radicado no nordeste francês–, foi ter com o homem.

    Observou-o passear com um cachorro e... entrou no cinema para ver Chaplin, sem dirigir ao sujeito sequer uma palavra.

    COLECIONADOR

    Rejeitado pela mãe católica, que o pariu longe de casa, Truffaut chegou a ser despachado pelo padrasto para um reformatório, antes de se alistar no Exército, desertar, ser preso e internado num hospital psiquiátrico (ele tentara se matar). A história familiar conturbada despertou nele um colecionismo febril.

    "Ele precisa guardar [objetos, documentos]. Sua trajetória é tão incerta, tão sujeita a desventuras domésticas e financeiras que ele constitui um pequeno tesouro íntimo para se dar tantas provas quanto possível de que a sua vida tem um sentido", analisa Toubiana.

    Entre as preciosidades do baú truffautiano o curador destaca cartões postais enviados em 1945 (aos 13 anos, portanto) a um amigo de infância e cadernos com anotações sobre livros e filmes devorados –o diretor calculava ter visto 2.000 títulos em cerca de sete anos de frequência assídua à Cinemateca, durante a adolescência.

    Em São Paulo, os mais de 600 itens expostos incluem desenhos, cartas, fotos de set ao lado de algumas de suas atrizes-fetiche (como Jeanne Moreau, Catherine Deneuve, Claude Jade e Fanny Ardant, com quem teve relações que variaram do namorico ao casamento), roteiros anotados e os livros que deram origem a boa parte desses.

    "Truffaut era um homem da palavra, da escrita, e não um pintor, um cineasta inspirado pelas artes plásticas. Ele rabisca, rasura, corrige aquilo que cai em suas mãos. 'Violenta' o livro para extrair imagens, chegar à quintessência do cinema", comenta Toubiana, que diz ter querido mostrar um artista longe da imagem dócil e pequeno-burguesa que a crítica engajada dos anos 1960 e 1970 tentou lhe colar.

    "Tínhamos até algum tempo atrás uma apreciação frouxa da obra dele: 'Truffaut, que amava as mulheres e as crianças'. Sempre vi seu modo de abordar o amor e de tratar o sexo feminino como sinônimo de aventura e coragem, algo mais sombrio, melancólico e radical", completa ele.

    CENÁRIO DE FILME

    Um ano atrás, antes mesmo da abertura em Paris da exposição sobre o criador de "Os Incompreendidos" (1959), Serge Toubiana escreveu ao diretor-executivo e curador-geral do MIS, André Sturm, sugerindo a ida do acervo ao Brasil.

    Será a segunda parceria entre as instituições, depois da mostra em torno do pioneiro do cinema Georges Méliès (1861-1938).

    A versão que aporta em São Paulo tem projeto cenográfico próprio e algumas seções novas em relação à francesa, num percurso que tenta acenar tanto para "iniciados" quanto para neófitos, segundo Sturm.

    Há, por exemplo, uma sala que reproduz parcialmente a ambientação da clássica cena da corrida do trio do filme "Jules e Jim" sobre uma passarela.

    Em outro espaço, será possível espiar, através de olhos mágicos, cenas de longas como "Um Só Pecado" (1964) e "A Noite Americana" (1973), protagonizadas por musas do diretor –respectivamente, Françoise Dorléac (irmã de Deneuve morta aos 25 anos) e Jacqueline Bisset.

    As sabatinas do francês com o diretor de "Psicose", que deram origem em 1966 à compilação "Hitchcock/Truffaut - Entrevistas" (editora Companhia das Letras, R$ 84) uma das bíblias da cinefilia moderna, são lembradas sob a forma de excertos sonoros.

    A defesa do cineasta inglês como autor maioral, e não simples executor eficiente de suspenses (como até ali se costumava ver), agita o Truffaut crítico das revistas "Cahiers du Cinéma" e "Arts" no início dos anos 1950 –outra das facetas exploradas na exposição.

    É como resenhista que ele assina a célebre diatribe contra a suposta supremacia do roteiro sobre a encenação nos filmes de seu país ("Uma Certa Tendência do Cinema Francês").

    Insolente, aos 22 anos, tasca sobre diretores consagrados o rótulo de "caricaturas". Como lembraria em 1970 o título de um de seus trabalhos de ecos autobiográficos, Truffaut nunca deixou de ser um "garoto selvagem".

    TRUFFAUT: UM CINEASTA APAIXONADO
    QUANDO abertura nesta terça (14); ter. a sáb., das 12h às 21h; dom. e feriados, das 11h às 19h; até 18/10
    ONDE MIS - av. Europa, 158; tel. (11) 2117-4777
    QUANTO R$ 10 (gratuito às terças); ingressos antecipados pelo site www.ingressorapido.com.br
    CLASSIFICAÇÃO livre

    Truffaut sem cortes

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