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    crítica

    Novo livro de Harper Lee retrata fim das ilusões da infância

    JOÃO PEREIRA COUTINHO
    COLUNISTA DA FOLHA

    16/07/2015 02h20

    Valeu a pena esperar. Eis o primeiro pensamento quando terminamos "Go Set a Watchman", novo romance de Harper Lee depois do clássico "O Sol É para Todos" (1960). Não era tarefa fácil: como publicar algo de valioso depois de uma obra que marcou a literatura americana do século 20 de forma perene?

    A resposta de Harper Lee, mais de 50 anos depois de uma lendária reclusão, é inteligente e primorosa: o livro, escrito antes de "O Sol É para Todos", teria que oferecer ao leitor não a vida social de Maycomb, Alabama –mas a vida interior dos seus personagens.

    Joe Raedle - 14.jul.2015/AFP
    O novo livro da escritora Harper Lee, 'Go Set a Watchman', lançado mundialmente nesta semana.
    O novo livro da escritora Harper Lee, 'Go Set a Watchman', lançado mundialmente nesta semana.

    Então encontramos Jean Louise, mulher adulta, que regressa a Maycomb 20 anos depois para visitar o pai, Atticus Finch, envelhecido e debilitado. Relembro: Jean Louise, juntamente com o irmão Jem, eram as crianças de "O Sol É para Todos" que acompanhavam a odisseia do pai advogado para libertar um negro acusado de violar uma moça branca. Injustamente acusado, diga-se.

    Mas o tempo passou; o mundo conheceu mais uma guerra mundial; Jem, o irmão, faleceu entretanto; e Jean Louise (ou "Scout", como lhe chama o pai) confronta-se com todas as mudanças que a passagem dos anos trouxe: as mudanças físicas, porque Maycomb já não é o vilarejo da infância; as mudanças sociais, porque o pós-guerra despertou os movimentos "civis" que lutaram pelo fim da segregação racial; e as mudanças familiares, que lhe oferecem uma visão do pai diferente da visão idolatrada da infância. E que visão é essa?

    Não pretendo estragar a surpresa do potencial leitor. Mas duvido que a revelação seja uma surpresa, depois do terremoto midiático que o livro provocou nas últimas 48 horas: Atticus Finch, o mesmo que defendera um negro em tribunal e que proclamava "direitos iguais para todos, privilégios especiais para ninguém", é agora um opositor da sua própria filosofia. "Os negros daqui ainda estão na infância como povo", diz Atticus à filha.

    Jean Louise, incrédula, sente-se traída e repugnada. Será possível que a sua vida, a sua educação, as lições de tolerância que aprendera com o pai viúvo tenham sido uma dolorosa mentira? Sobretudo quando o pai, esse exemplo de retidão e justiça, não passa de um "nigger-hater" que nega direitos civis aos negros por temer a corrupção política que gente impreparada (e "inferior", intelectualmente falando) pode trazer para a governança do país?

    "Go Set a Watchman" começa por ilustrar essa terrível ambivalência que muitas almas "liberais" sentiram na década de 1950, quando o Alabama iniciou as suas "marchas" pela igualdade política dos negros.

    'SENHORES DO SUL'

    Atticus Finch não se distingue de muitos "senhores do Sul" que, paradoxalmente, não aceitavam a crueldade de tratamento sobre os negros, mas também não confiavam nos negros para que eles pudessem ser cidadãos de pleno direito.

    Vá, Coloque Um Vigia
    Harper Lee
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    Mas o livro de Harper Lee é sobretudo um comovente retrato sobre o fim das ilusões da infância. E é o tio de Jean Louise, irmão de Atticus, quem oferece um dos monólogos mais impressionantes da obra: a sobrinha, diz ele, sempre olhou para o pai como um deus terreno –um ser perfeito, sem fraquezas de qualquer espécie.

    Só que os seres humanos não são assim –e só uma criança acredita na absoluta incorruptibilidade dos adultos. Atticus Finch é um ser falível, preconceituoso, amedrontado –e o papel da filha não é quebrar emocionalmente com as opiniões do pai; muito menos fugir dele, só porque os pensamentos do progenitor estão errados.

    A sobrinha, diz o tio, é "an emotional cripple": literalmente, uma deficiente emocional. Porque incapaz de aceitar qualquer dissonância entre as suas ideias e as do pai.

    No fundo, o destino de Jean Louise é o destino de todos nós: crescemos com a certeza confortável de que os pais são oniscientes. Mas a verdadeira passagem para a idade adulta só acontece quando olhamos para os nossos pais como eles realmente são: criaturas com virtudes e vícios, que não habitam nenhum pedestal.

    Aceitar esses vícios e destruir o pedestal é a única forma de os amarmos autenticamente. Como se fosse a primeira vez.

    GO SET A WATCHMAN
    AUTOR: HARPER LEE
    EDITORA: HARPER-COLLINS
    QUANTO: US$ 15,99 (E-BOOK) E US$ 27,99 (288 PÁGS., IMPORTADO; A EDIÇÃO BRASILEIRA SAI EM OUTUBRO PELA JOSÉ OLYMPIO)

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