Não seria de todo estranho comparar "A Merda" ("La Merda", 2012, do italiano Cristian Ceresoli), dirigida e interpretada por Christiane Tricceri e em cartaz no Sesc Pinheiros, à obra da carioca Adriana Varejão, especialmente a seus quadros que escondem vísceras vermelhas sob azulejos azuis e brancos.
No espetáculo, uma mulher sentada sobre um poleiro, bem no centro do palco, nua e iluminada por um holofote, vai nos fazer enfrentar a exposição de todo tipo de excrescência psicológica, passando, por exemplo, pela descrição de um pênis sendo triturado por seus dentes, depois engolido e defecado. Outros personagens e objetos também são oniricamente transformados em fezes.
Edilson Dantas/Folhapress | ||
Christiane Tricerri no monólogo 'A Merda', que protagoniza e dirige |
A voz de Tricceri, de cujo relevo infantilizado eclodem variações demoníacas assustadoras, expõe lembranças de uma mulher que tem anomalias físicas e mentais.
Caótico, o fluxo de seu pensamento evoca personagens incrustados a traumas diversos de sua vida, ligados inclusive a eventos de sujeição sexual.
Esse jorro coloca o espectador não só na posição de confidente, mas também de cúmplice. Quem ri da desgraça dela, respondendo a qualquer estímulo cômico, corre o risco de desobedecer os mesmos valores morais que a obra revela.
A comparação com os quadros de Varejão diz respeito a essa capacidade do grotesco de fazer com que algo oculto atravesse a superfície das aparências.
Sem filtros, o grotesco tem ainda a capacidade de expandir suas fronteiras, partindo de investidas líricas para metáforas sobre os tecidos políticos e sociais.
"A Merda" faz menções ao machismo, por exemplo, ao patriotismo italiano e, bem diretamente, à falta de humanismo no ambiente da TV. Coincidência ou não, a peça estreou um ano após Silvio Berlusconi, político controverso, dono de canais de TV na Itália, deixar o cargo de primeiro-ministro, em 2011.
POLÍTICA GROTESCA
No Brasil, reverberações grotescas (a exemplo de peças de Gerald Thomas e da canção "Bichos Escrotos", dos Titãs) ganhou terreno nos anos 1980, momento de abertura política. Havia algo a ser simbolicamente excretado por meio da arte? Com certeza havia. Mas, aos poucos, o grotesco perdeu terreno.
É claro que esse tipo de alusão política na arte, sozinha, não produz, hoje, o mesmo efeito combativo de 30 anos atrás. Sobra, portanto, especialmente nessas sessões em São Paulo, distantes do contexto político italiano que a peça brevemente menciona, identificar o que há de elementar nas metáforas criadas pela protagonista no palco. O que há no avesso da moralidade e da boa educação.
"A Merda", muito pertinentemente, vem nos indagar sob quais superfícies escondem-se atualmente outras possíveis excrescências.
Só que o faz com menos impacto, talvez, porque o gênero perdeu com o tempo um tanto de sua capacidade de ser agressivo, frente às barbaridades que nos habituamos a ver no noticiário.
Resta, então, perguntar-nos se alguém ainda é capaz de se incomodar com o conteúdo de "A Merda", que está sendo exposta em uma sala de teatro da cidade. A mim, infelizmente, esse espetáculo não causou tanto incômodo assim.