"Será que vou passar a imagem certa?", pergunta para a câmera portátil uma descabelada e aflita Caitlyn Jenner, 65, mulher que emergiu no corpo que até meses atrás a mídia convencionava chamar de Bruce Jenner, ex-campeão olímpico de decatlo e figura paterna do reality show "Keeping Up with the Kardashians", um dos programas mais vistos do mundo.
A cena é a abertura de "I am Cait", reality show que mostra sua transformação de Bruce para Caitlyn e que estreia no começo de agosto no canal E!, o feudo do clã de Kim, Khloe, Kendall e outras Kardashians.
Mas há algo de diferente na nova empreitada, cujo primeiro episódio a Folha viu nesta quinta (23).
A histeria gratuita do programa sobre a família, que tinha episódios inteiros pautados em temas com a profundidade de: a Kim perdeu seu brinco de diamantes no mar ou a Kim não gosta dos sapatos que escolher para ir a uma premiação, é substituída por uma liberdade melancólica já nos primeiros minutos do episódio de estreia.
Sozinha numa casa isolada no alto de um morro, Caitlyn espera sua mãe e sua irmã chegarem do aeroporto para se depararem com sua silhueta feminina pela primeira vez. Fazia quatro anos que a família não se reunia. A dúvida de Caitlyn quanto ao figurino transcende os pitis de suas filhas: ela evita pôr um vestido para não chocar demais os familiares ("Vamos aos poucos"). Escolhe um terninho branco, fecha o decote que exibia os seios recém-implantados e solta o cabelo, encaracolado com baby liss.
A família se reencontra e lava com lágrimas a roupa suja. Cerca de 30 anos atrás, Bruce tinha dito para uma das irmãs que era uma mulher presa no corpo de um homem. "Eu achei que você estivesse curada", chora a irmã. Uma terapeuta ajuda a família na conversa: "É importante usar o pronome certo. Ela é ela agora".
Kim Kardashian chega acompanhada pelo marido Kanye West e por seu mar de platitudes. A enteada perpassa o guarda-roupa da agora madrasta: "Mamãe tem um vestido igual", diz para um Tom Ford que o próprio estilista mandou para Caitlyn. "Ai, não, esse é nojento! Já disse que você precisa se livrar desse", diz, e riem de modo que parece de verdade.
Mas nem tudo é espontâneo no vídeo. Em dado momento da visita de Kim e Kanye, uma irmã sexagenária da protagonista começa a falar sobre o tênis que o rapper usa, um modelo que ele criou em parceria com uma grife, numa espécie de "merchan" constrangedor. Não se sabe por que a senhorinha meio caipira entra no assunto com uma vontade "súbita" e "irrefreável" (corre-se o risco de esgotar o estoque de aspas do mundo, se usadas a cada encenação dos realities da família, os menos reais já vistos).
Um dos poucos elementos do mundo externo é quando Caitlyn sai de casa escondida, e troca de carro três vezes para despistar os fotógrafos. "Ouvi dizer que uma foto minha anda custando US$ 250 mil [mais de R$ 750 mil]", diz ela, deitada no banco traseiro de uma van combalida, em que se locomove para despistar os paparazzi.
A reclusão ia além da necessidade de contemplação pessoal: era para guardar o elemento-surpresa que a nova identidade teria na capa da revista "Vanity Fair", sob a manchete "Call me Cait" (me chamem de Cait), e para aumentar o valor de mercado das cenas do próprio reality. Nada aqui é impensado.
É deliberadamente política a visita que ela faz à família de um adolescente trans que se matara dias antes. O número de uma linha de apoio para transexuais que cogitam o suicídio aparece na tela. "Esse é meu papel, já que sou vista como uma representante dessas pessoas", diz ela.
Terminado o episódio, a vontade é de se levantar para aplaudir o louvável caráter educativo do programa. Só resta saber se os milhões de olhos que veem Kim Kardashian comprar roupas como quem toma água e chorar por saltos de sapatos que quebraram estarão a fim de permanecerem atentos em uma hora de uma questão profunda, sofrida e bastante mais real que o maior reality show do mundo.