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    Após liberação de cartas de Mário, instituições reveem acesso a acervos

    RAQUEL COZER
    COLUNISTA DA FOLHA

    25/07/2015 02h00

    Os maiores segredos da Fundação Casa de Rui Barbosa, no Rio –uma série de cartas, diários e outros manuscritos há décadas inacessíveis ao público–, têm sido escrutinados nas últimas semanas por uma equipe de quatro pesquisadores.

    Eles formam um grupo de trabalho que a instituição –ligada ao Ministério da Cultura e responsável pela preservação e difusão de acervos pessoais de autores como Manuel Bandeira e Vinicius de Moraes– criou para avaliar algumas dezenas de documentos que estão guardados sob o status de "reservados".

    A iniciativa de rever os papeis secretos decorreu de um revés para a instituição. Em junho, ela foi obrigada pela CGU (Controladoria-Geral da União) a liberar acesso a uma carta de Mário de Andrade a Manuel Bandeira, de 1928 –a única correspondência entre os dois na Casa de Rui que permanecia fechada, por conter comentários sobre a sexualidade do modernista.

    Reprodução
    Acesso a carta de Mário de Andrade a Manuel Bandeira, de 1928, só foi liberado este ano.
    Acesso a carta de Mário de Andrade a Manuel Bandeira, de 1928, só foi liberado este ano.

    Em 1978, quando o acervo de Bandeira chegou à instituição, o então diretor da casa decidiu, junto com os herdeiros de Mário, que essa carta seria liberada em 1995. Mas nunca mais o documento foi liberado para pesquisadores. A CGU, órgão que zela pela transparência em âmbito federal, entendeu que a Casa de Rui tinha extrapolado o prazo de reserva da carta.

    Aquele não era o único documento lacrado na casa. No primeiro semestre deste ano, enquanto debatia com a CGU contra a abertura –alegando que o herdeiro de Mário não autorizava–, e ciente de que o caso chamaria a atenção para seus outros documentos sigilosos, a instituição resolveu tirar de seu site os avisos de "reservado" que apareciam em vários deles.

    Agora, após a decisão da CGU, a Casa de Rui decidiu avaliar tudo para ver o que pode ser liberado. Alguns papéis chegam a estar lacrados até 2097, conforme acordo com os herdeiros no momento da doação –e não está claro nem para a instituição por quê.

    Ricardo Calmon, diretor executivo da Casa de Rui, diz que a meta é esclarecer casos que, como na carta de Mário, o prazo combinado com a família já tenha vencido.

    A preocupação do pesquisador é fazer com que os doadores –atuais e futuros– saibam que, se houver um acordo vigente, será respeitado. "Isso é importantíssimo para que as pessoas não se sintam inibidas de doar seu acervo."

    OUTRAS INSTITUIÇÕES

    A Casa de Rui não é exceção entre as instituições que recebem acervos pessoais de personalidades no país.

    A relação que se cria numa doação de acervo é delicada. Na maior parte dos casos, os herdeiros continuam detentores dos direitos autorais, de modo que os documentos não podem ser copiados para publicação sem autorização. Eles também podem fazer valer o direito à intimidade, restringindo alguns documentos, embora o acervo como um todo passe a ser de acesso público.

    Embora boa parte das instituições afirme não ter nenhum documento secreto, todas entendem que é prerrogativa dos herdeiros estipular alguma restrição ao doar.

    "Nossa condição para receber acervo privado é a abertura do acesso. Mas o doador pode dizer: gostaria que esse conjunto fosse mantido por prazo determinado de reserva. Se for uma parcela pequena, no qual ele determine uns 20 anos, mas a maior parte do acervo esteja aberta, é vantagem receber", diz Jaime Antunes, diretor do Arquivo Nacional, que guarda 250 acervos pessoais, como os de Afonso Pena e Góis Monteiro.

    Tanto instituições privadas, como o Instituto Moreira Salles e a PUC-RS, quanto públicas, como o Instituto de Estudos Brasileiros da USP, têm documentos sob sigilo.

    "Toda instituição pode ter documentos secretos. Cartas são documentos de foro íntimo, as famílias que as depositam têm o direito de dizer se querem que sejam vistos ou não", diz Elvia Bezerra, do Instituto Moreira Salles (IMS), que detém 25 acervos, incluindo os de Paulo Mendes Campos, Ana Cristina César e Clarice Lispector.

    A coordenadora de literatura diz que a doação também é feita em nome da preservação, e daí são incluídos no lote papéis que a família preferiria não ver divulgados.

    Diferentemente de outras instituições, o IMS consulta a família sobre acessos específicos, mesmo que não exista restrição no termo de doação. Entre os inacessíveis da instituição, no Rio, estão cartas de Dalton Trevisan para Otto Lara Resende.

    "A lei de arquivos prevê que a instituição tem que zelar pela moral do titular. Como isso é subjetivo, o que faço é sempre consultar a família", diz Elvia. "Tenho o maior prazer em liberar documentos, é uma função do arquivo, mas há a questão ética."

    Luiz Antonio Assis Brasil, que cuida do Delfos (Espaço de Documentação e Memória Cultural) da PUC-RS, diz considerar "natural" o pedido de restrição de documentos, mas quer estabelecer prazos, "daqueles clássicos, de 30 ou 50 anos", para não permitir o bloqueio indefinidamente. "Estou moralmente interessado na divulgação do acervo na íntegra."

    Na PUC-RS, estão lacrados, a pedido da família, diários de Caio Fernando Abreu, embora outros manuscritos dele possam ser pesquisados.

    Divulgação
    Diários do escritor gaúcho Caio Fernando Abreu estão lacrados em acervo da PUC-RS.
    Diários do escritor gaúcho Caio Fernando Abreu estão lacrados em acervo da PUC-RS.

    ACESSO

    A decisão de liberar a carta de Mário foi tomada com base na Lei de Acesso à Informação, que estipula que a restrição relativa à privacidade não pode prejudicar ações voltadas para a recuperação de fatos históricos. A lei, de 2011, revogou artigos da Lei de Arquivos, de 1991.

    O posicionamento CGU foi visto com bons olhos por instituições do gênero. Algumas, como a Academia Brasileira de Letras, privada, e a Fundação Joaquim Nabuco, pública, estão dispostas a rever normas internas para "adequá-las aos novos tempos", como diz Maria Oliveira, responsável pelo acervo literário da ABL.

    "Essa discussão a gente tem aqui. Estamos revendo nossas normas com base nos vários fatores envolvidos, como a questão dos direitos autorais, de imagem, de privacidade", ela afirma.

    Flávia Leão, responsável pelo Cedae (Centro de Documentação Cultural Alexandre Eulalio), que reúne 30 acervos de escritores na Unicamp, diz que o conflito entre leis não é um "privilégio" brasileiro. "Acho que o Brasil tem avançado nesse aspecto, embora faltem políticas públicas de informação", diz.

    Embora gestores defendam regras mais bem definidas especificamente para acervos, Gilberto Waller Junior, ouvidor-adjunto da Ouvidoria Geral da União, acredita que a legislação vigente já basta. "Regras específicas, se criadas para os arquivos, podem ensejar retrocesso no direito de acesso à informação".

    Na avaliação dele, falta uma regulamentação mais clara no que diz respeito à proteção de dados pessoais –atualmente, há um projeto de lei sobre o assunto em fase de consulta pública.

    A Casa de Rui diz que os papéis secretos correspondem a uma minoria de seu acervo. Seriam poucas dezenas num conjunto cuja dimensão não é medida em milhares de itens, mas em pilhas –se colocados uns sobre os outros, os documentos teriam 350 m, um prédio de 115 andares.

    "Os reservados não chegariam a 1 cm se empilhados", diz o diretor-executivo Calmon, sem esclarecer quais autores estão nesse pacote –sabe-se que Pedro Nava é um deles.

    *

    TESOUROS ESCONDIDOS
    As instituições e os documentos fechados para pesquisadores

    Delfos - Espaço de Documentação e Memória Cultural da PUC-RS (privado) Porto Alegre, 2008
    40 arquivos pessoais, como os de Moacyr Scliar e Cyro Martins
    Segredos Diários de Caio Fernando Abreu, reservados até a família decidir o contrário

    Arquivo Museu de Literatura Brasileira da Fundação Casa de Rui Barbosa Rio de Janeiro, 1972
    135 arquivos pessoais, como os de Manuel Bandeira, Antonio Calado e Carlos Drummond de Andrade
    Segredos Dezenas de documentos fechados, incluindo correspondência de Pedro Nava

    Acervo de Literatura do Instituto Moreira Salles (privado) Rio de Janeiro, 1994
    25 arquivos pessoais, como os de Otto Lara Resende, Clarice Lispector, Mário Quintana e Rachel de Queiroz
    Segredos Cartas de Dalton Trevisan a Otto Lara Resende são um exemplo; instituição sempre consulta familiares sobre liberações

    Instituto de Estudos Brasileiros da USP São Paulo, 1962
    80 arquivos pessoais, como os de Guimarães Rosa, Caio Prado Jr., Graciliano Ramos e outros
    Segredos A instituição sempre foi acusada de dificultar acesso a cartas de Mário de Andrade; IEB não se manifestou

    INSTITUIÇÕES QUE AFIRMAM NÃO TER ARQUIVOS SECRETOS

    Arquivo Nacional Rio de Janeiro, 1838
    250 arquivos pessoais, como os de Afonso Pena e Góis Monteiro.

    Acervo de Escritores Mineiros da UFMG Belo Horizonte, 1989
    13 arquivos pessoais, como os de Henriqueta Lisboa, Murilo Rubião e Aníbal Machado.

    Acervo da Fundação Joaquim Nabuco Recife, 1974
    220 arquivos pessoais, como os de Josué de Castro, André Rebouças e Aloísio Magalhães.

    Centro de Documentação Cultural Alexandre Eulálio da Unicamp Campinas, 1984
    30 arquivos pessoais, como os de Hilda Hilst e Monteiro Lobato.

    Arquivo dos Acadêmicos da ABL (privado) Rio de Janeiro, 1897
    282 arquivos pessoais, como os de Machado de Assis, Roquette Pinto e Ivan Junqueira.

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