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    Livro relembra aventura de arquitetos latino-americanos em Havana

    SILAS MARTÍ
    DE SÃO PAULO

    30/07/2015 02h30

    Nadezhda Krupskaya. Mais do que batizar a mulher de Lenin, essas palavras emolduram há mais de 50 anos as memórias de uma Havana eufórica na cabeça de uma geração de arquitetos. De vez em quando, eles ainda se pegam murmurando as sílabas pedregosas ao lembrar a alvorada no Malecón ou um bolero qualquer.

    Tal qual o Rosebud, mítico trenó do personagem principal de "Cidadão Kane", esse era o nome do navio russo que atracou em Santos, no litoral paulista, para levar uma delegação de arquitetos latino-americanos a um congresso na capital cubana em 1963.

    Quatro anos depois que Fidel Castro e Che Guevara derrubaram o governo do ditador Fulgencio Batista, Havana queria se exibir para o mundo como teatro intrépido do socialismo. A então União Soviética ajudou, mandando um barco até os trópicos para engrossar as fileiras de testemunhas do novo regime.

    Enquanto futuras estrelas da arquitetura nacional, como Vilanova Artigas e Paulo Mendes da Rocha, voaram para Cuba passando antes pela antiga Tchecoslováquia, estudantes brasileiros, argentinos, uruguaios e chilenos encararam –sem reclamar– 13 dias de viagem marítima de Santos a Havana, com escala no Recife.

    Um desses rapazes era Cesar Dorfman. Hoje com 74 anos, o arquiteto de Porto Alegre acaba de reconstruir a história dessa jornada em livro, reunindo lembranças da aventura na ilha socialista às vésperas do golpe militar que abalou o país no ano seguinte.

    Seu retrato edulcorado de Havana chega às livrarias no rastro da reabertura das relações diplomáticas entre Estados Unidos e Cuba, pondo fim ao bloqueio que enforcou a economia do país e sepultou as esperanças dos socialistas.

    Mas no imaginário da época, lembra Dorfman, Cuba só era conhecida no Brasil pelos "musicais de Hollywood de segunda categoria, com ricaços americanos fumando longos charutos e coxudas rumbeiras". Vez ou outra estampava a capa da "Life", que os pais do pequeno Dorfman diziam ser "instrumento de propaganda do imperialismo ianque".

    "Era um lugar mítico e longínquo que estava na mídia", diz o arquiteto. "Havana até então era um bordel e tinha saído de uma ditadura brutal."

    Em alto-mar, Dorfman, 300 estudantes e uma tripulação de loiras russas em férias tentavam se distrair enquanto a visão dessa nova Havana não despontasse no horizonte.

    No calor tropical, os rapazes andavam só de calção e garotas ficavam alvoroçadas nas noites de luar. Dormindo em camarotes separados, a solução era se esbaldar em festas no convés animadas ao piano por Dorfman –o sucesso do momento era "Garota de Ipanema"– e outros instrumentistas de ocasião, que formaram o Nadezhda Quintet.

    Na chegada a Havana, os "nadezhdianos" trocaram a balada no mar pelo êxtase de uma cidade em convulsão.

    "Parecia um quadro armado para impressionar. Em primeiro plano, aquele marzão lindo, grossas nuvens e a linha clara dos prédios da cidade", escreveu Dorfman, sobre a chegada deles à ilha. "Também impressionante e comovente era o silêncio de todos nós, de pé, estáticos no convés do navio olhando aquela cidade como um dia olhou um cristão chegando a Jerusalém."

    Menos sagrada, a Havana que se descortinou diante dos olhos de Paulo Mendes da Rocha não deixava de ser dramática. "Tenho uma memória nítida de tudo", conta o arquiteto. "Tudo foi muito momentoso, a cidade inteira se comportou como um teatro pleno."

    Naquele palco, chamavam a atenção os jovens armados, civis alinhados ao regime castrista que patrulhavam a cidade com fuzis para defender a nova ordem –visão em flagrante contraste com os médicos recém-formados desfilando pelas ruas da capital.

    REVELAÇÃO

    "Era uma situação extraordinária. Aquilo foi uma revelação para mim", diz Mendes da Rocha. "O cinema deles se desenvolvia, os estudantes de medicina se exibiam com seus estetoscópios no pescoço. Havana era uma festa o tempo todo. No fundo, era a construção da cidade contemporânea."

    Também era a construção de um mito. Dorfman lembra que, embora a nata da arquitetura mundial estivesse dando pinta por Havana naqueles dias de setembro de 1963, pouco se falou da disciplina. "Só era necessário, na nossa visão, pensar na mudança do capitalismo para o socialismo."

    Nesse sentido, Fidel Castro e Che Guevara surgiam então como estrelas do que entendiam como a "conquista de um mundo melhor". Dorfman lembra um comício de Castro em que os arquitetos da delegação latina ficaram numa espécie de camarote armado numa praça da Revolução lotadíssima, comparando o cenário à arena de um show de rock.

    "Éramos privilegiados, ao lado de Fidel e olhando a multidão por cima", escreveu. "Estava próximo e pude observar sua técnica. Falava de improviso, com gestos teatrais, tirando e botando os óculos de grossos aros e fazendo pausas estudadas, que davam oportunidades para manifestações da multidão."

    Enquanto Castro encantava pelo gestual calculado, Che Guevara, que em discurso aos visitantes reconheceu sua "atroz ignorância da arquitetura", seduzia pela retórica.

    "Um fuzil era uma arma feia quando cuspia contra nós nas mãos dos soldados de Batista, mas ganhava beleza quando a conquistávamos", dizia Guevara. "A arma se dignifica em nossas mãos sem mudar em nada sua função de matar homens. Mas para usar a arma da técnica a nosso serviço, é preciso ter a sociedade nas mãos."

    Em retrospecto, as palavras de Che lá atrás pareciam descrever o quadro de "patrulha cultural" que Dorfman identificou décadas mais tarde na ilha sob domínio castrista. "Minha visão hoje é querer ver o que vai acontecer daqui para a frente", diz o autor. "Sempre fica para mim a dúvida se tudo não teria sido melhor se não tivesse havido o bloqueio dos americanos."

    De volta ao Brasil, Dorfman e todos os arquitetos que puseram os pés em Havana foram perseguidos pelo regime militar, encerrando o que ficou na memória dessa geração como utopia fracassada.

    "Quando veio a ditadura, achava que se podia lutar contra ela fazendo projetos", diz o autor. "Mas não mudamos costumes. Com arquitetura não se faz revolução. Só criamos espaços interessantes."

    Em busca desses espaços, Dorfman conta que até hoje sonha com a Havana daquela época. "Tempos depois de voltar ao Brasil, repeti muitas vezes um ritual de saudade", escreveu. "Botava a rodar um dos discos de música cubana que havia trazido e, de olhos fechados, recordava momentos bonitos que vivi na ilha."

    HAVANA 63
    AUTOR Cesar Dorfman
    EDITORA Movimento
    QUANTO R$ 40 (328 págs.)
    LANÇAMENTO nesta sexta (31), às 19h, no Instituto de Arquitetos do Brasil (r. Bento Freitas, 306)

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