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    Em autobiografia, Oliver Sacks mostra como une ciência, arte e filosofia

    REINALDO JOSÉ LOPES
    DE COLABORAÇÃO PARA A FOLHA

    31/07/2015 02h00

    Dizer que "Sempre em Movimento", novo livro do neurologista e escritor britânico Oliver Sacks, 82, não segue o padrão que se espera da autobiografia de um cientista seria abusar do eufemismo.

    Autobiografias científicas, afinal, não costumam misturar descrições do funcionamento do cérebro com relatos sobre a carreira de motoqueiro, fisiculturista e usuário de drogas do protagonista.

    De fato, se fosse uma obra de ficção, o livro seria notável pela mistura de gêneros, da comédia de costumes ao relato de viagem, com pitadas de especulação filosófica e erotismo. Ao mesmo tempo em que analisa de forma brutalmente honesta sua juventude errática, seus laços familiares e sua sexualidade, Sacks retrata como a compreensão sobre o funcionamento, a complexidade e a diversidade do cérebro humano avançou de meados do século 20 até hoje.

    Conhecido pela habilidade em retratar o mundo interior de pessoas com autismo, com dificuldade de reconhecer rostos ou com síndrome de Tourette (distúrbio que leva a tiques obsessivos e ao uso incontrolável de palavrões, por exemplo), Sacks usa essas técnicas para delinear personagens de sua própria vida.

    Moacyr Lopes Junior/Folhapress
    O neurologista britânico Oliver Sacks em palestra em São Paulo em 2005
    O neurologista britânico Oliver Sacks em palestra em São Paulo em 2005

    Entre eles há figuras-chave da ciência e da literatura, como seus amigos Francis Crick (codescobridor da estrutura do DNA) e W.H. Auden (um dos maiores poetas britânicos do século passado).

    É difícil não notar o abismo que separa a tremenda empatia dos escritos e do trabalho cotidiano de Sacks –ferramenta indispensável nas tentativas de entender a cabeça dos pacientes– e suas dificuldades quase patológicas de formar laços afetivos.

    Em dado momento da narrativa, de modo aparentemente casual, ele comenta: "Após aquele agradável romance de aniversário, eu passaria os 35 anos seguintes sem nenhuma relação sexual". (A lacuna seria sanada em 2008, quando conheceu seu atual companheiro, o escritor Bill Hayes.)

    Para quem pensa de modo freudiano, faz sentido associar as décadas de celibato à reação da mãe do autor ao saber de sua homossexualidade: "Você é uma abominação. Quisera que você nunca tivesse nascido". Muriel Sacks, no entanto, logo se reconciliou com o filho caçula.

    Além do preconceito contra gays típico da época e do meio social no qual o jovem Oliver cresceu, o livro deixa entrever outros elementos que o tornaram irremediavelmente travado nesse aspecto.

    CURIOSIDADE INFANTIL

    Um deles é simplesmente a sua timidez. Outro, mais complexo e cativante, é a curiosidade quase infantil –no melhor sentido da palavra– que ainda parece acompanhar o médico octogenário.

    Incapaz de entabular uma conversinha mole sobre o tempo ou sobre o futebol, o neurologista é capaz de parar desconhecidos na rua apenas para compartilhar sua empolgação com o eclipse da Lua que está acontecendo.

    Ou de entrar num bar gay para chamar a atenção dos frequentadores para as propriedades ópticas das luzes coloridas do lugar.

    "Ei, vocês, parem de falar sobre sexo! Deem uma olhada em algo realmente interessante", teria dito ele à clientela do bar.

    Nem um tumor ocular é suficiente para desligar essa curiosidade –Sacks lamenta a perda da visão num dos olhos ao mesmo tempo em que comemora os "encantadores" fenômenos visuais produzidos pela ação da radioterapia e do laser em sua retina.

    Seis meses depois de Sacks publicar um texto confessional no jornal "The New York Times", anunciando ter um câncer terminal e se despedindo antecipadamente da vida, as previsões do médico sobre sua morte iminente ainda não se concretizaram.

    Sempre em Movimento
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    Outra previsão, porém, provavelmente é uma aposta segura: Sacks é um dos últimos exemplares de uma estirpe de intelectuais capaz de transcender as fronteiras que separam a ciência da arte e da filosofia. Não haveremos de ver outros como ele tão cedo.

    SEMPRE EM MOVIMENTO: UMA VIDA
    AUTOR: OLIVER SACKS
    TRADUÇÃO Denise Bottmann
    EDITORA: COMPANHIA DAS LETRAS
    QUANTO: R$ 59,90 (384 PÁGS.) E R$39,90 (E-BOOK)

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