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    OPINIÃO

    Orlando Orfei morre, mas é uma lenda que nos ajuda a não desistir

    HUGO POSSOLO
    ESPECIAL PARA A FOLHA

    03/08/2015 03h00

    Apesar de ter morrido no sábado (1º), no Rio, de pneumonia, aos 95 anos, o italiano Orlando Orfei seguirá como viveu seus últimos anos, uma lenda.

    Nos anos 1980, quando eu era estudante da Picadeiro Circo-Escola, fomos convidados a assistir ao retorno de Orlando Orfei, após ter se recuperado de um derrame. Quando ele entrou trêmulo na jaula dos leões, arrastando uma das pernas, foi uma comoção. Ao erguer uma cadeira diante das feras, perdeu a força das mãos, derrubando-a no chão. A plateia ficou sem respirar.

    O leão avançava lentamente para dar o bote quando ele suspendeu a mão, detendo o animal com um gesto poderoso. Ainda trêmulo, de frente para aquela ameaça real, recuou e saiu da jaula ovacionado pelo público.
    Não me interessa se ele anunciou fazer "essa primeira entrada na jaula" mais umas cem vezes, pois aquela a que assisti foi tão real que me ensinou que o circo é uma arte na qual o tempo presente, o aqui-agora, é tão ficcional e mágico quanto a mais sofisticada das ficções.

    Claudio Freitas/Folhapress
    Orlando Orfei, no início dos anos 1990, em jaula durante espetáculo circense
    O empresário e domador Orlando Orfei, no início dos anos 1990, em jaula durante espetáculo circense

    Tenho a felicidade de fazer com os Parlapatões uma paródia de "As Águas Dançantes", um de seus números mais bregas e divertidos. Sinto que ele tenha partido sem assistir a essa homenagem.

    Muitos jovens não saberão quem era Orfei, que passou a morar no Brasil em 1968 e se apresentou num picadeiro pela última vez em 2008. Começou a vida como palhaço aos seis anos, quando o irmão, 20 anos mais velho, o colocava dentro das calças de figurino.

    Foi mágico, malabarista, domador de feras e equilibrista. Morava com a mulher, Herta, 80, com quem teve seis filhos.

    Hoje, quando um jovem artista despreza o circo antigo, percebo que confunde tradição com conservadorismo estagnante da expressão, pela falta de referências.

    O circo contemporâneo carece de autocrítica, sobretudo quando confunde a tradição com o espírito kitsch de Orfei, que reproduzia a Las Vegas dos anos 1970, a base de smoking, paetês dourados e sorrisos de cigarro mentolado.

    Como se a estética dessa Disney de adultos que é a Las Vegas de hoje, com o Cirque du Soleil desenhando mosaicos feitos de lixo do pop, não fosse também carregada da ostentação para impressionar pencas de turistas.

    Como não blasfemar a cada vez que um ícone como Orfei parte, se somos um país que não sabe cuidar de sua cultura? São Paulo tem um Centro de Memória do Circo que vive mais pelo empenho de seus funcionários que pelo desejo real do poder público em dar-lhe sentido vivo.

    Enquanto circenses pedem que a renovação venha com investimentos na formação de novas gerações, políticos negligentes continuam sentando em cadeiras de Secretarias de Cultura ignorando a importância do circo. É o caso do Circo Escola Piolin, cuja área já está desapropriada no Largo do Paissandu, sítio histórico dessa arte na cidade, que por falta de vontade ou competência é mais um projeto que não sai do papel.

    Assim, vamos vivendo de lendas, como Orlando Orfei, que nos alimenta a alma e nos ajuda a não desistir.

    HUGO POSSOLO, 53, é palhaço, dramaturgo e diretor do grupo Parlapatões

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