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    Veterano nacional, Othon Bastos estrela filme sobre amor ao cinema

    GUILHERME GENESTRETI
    ENVIADO ESPECIAL AO RIO

    19/08/2015 02h00

    A certa altura do filme "O Último Cine Drive-In", o surrado cinema ao ar livre onde a trama é ambientada projeta o longa "Central do Brasil" no telão. Naquele momento, dois personagens de Othon Bastos, que atua em ambas as produções, se cruzam na ficção.

    Muito adequado para uma obra como "O Último Cine...", sobre a paixão pelo cinema: aos 82 anos e com mais de 40 participações em longas, Othon tem uma carreira que se entrelaça com a própria história dessa arte no país.

    Ricardo Borges/Folhapress
    Othon Bastos em livraria no Rio de Janeiro
    Othon Bastos em livraria no Rio de Janeiro

    Entre os diretores que já o escalaram estão Glauber Rocha, Leon Hirszman, Nelson Pereira dos Santos, Ruy Guerra, Joaquim Pedro de Andrade, Walter Salles, Anselmo Duarte, Julio Bressane... A lista criou um carimbo que o ator baiano de voz grossa refuta.

    "Acham que só faço papel de protagonista, que só atuo em filme grande, que sou ator épico, essas coisas", diz, entre um gole de café e uma mordida do bolo de mandioca, numa livraria da zona sul do Rio. "Não é isso: às vezes não dá tempo, às vezes não gosto do roteiro e invento desculpa. Mas o desse menino eu quis."

    O menino é o brasiliense Iberê Carvalho, 39. "O Último Cine Drive-In", que entra em cartaz nesta quinta-feira (20) após ter vencido o prêmio da crítica em Gramado, é a sua estreia na direção de longas.

    Othon Bastos faz Almeida, dono de um decadente cinema ao ar livre, que vive às turras com o filho, Marlombrando, e com a possibilidade de seu empreendimento fechar.

    "É uma história que me pegou pela emoção", diz o ator. "Almeida luta para manter uma tradição que está acabando: as pessoas não saem mais de casa, e a cultura está reduzida à telinha da televisão."

    Carvalho justifica a escolha do ator: "O guardião do último cinema drive-in tinha que ser alguém que guardasse também a história do cinema brasileiro. Othon era o ideal".

    BRECHT NO SERTÃO

    Mas o proclamado guardião do cinema nacional insiste em dizer que entrou no cinema novo "pela porta dos fundos".

    Para o cangaceiro Corisco, o "Diabo Louro" do bando de Lampião em "Deus e o Diabo na Terra do Sol" (1964), Glauber Rocha tinha em mente Adriano Lisboa, alto e forte.

    Mas um atraso nas filmagens inviabilizou o intérprete inicial e deu chance ao baixo (1,65 m) e moreno Bastos, três filmes nas costas (incluindo o premiado "O Pagador de Promessas", de Anselmo Duarte) e carreira sólida no teatro. Ao cineasta, o ator propôs uma "experiência brechtiana no cinema": substituir flashbacks por cenas em que os personagens narram o que se passou.

    Ao valente Corisco, deu um tom rodopiante, ágil: "Na minha terra [a cidade de Tucano, no sertão da Bahia], corisco é um fogo de artifício que você joga e ele faz 'zzzzzzzzzz'", diz o ator, agitando o braço direito e imitando o barulho.

    "Nada de fazer cangaceiro que fala gritando", lembra o ator. "Quem grita perde a autoridade. Corisco é sereno: a voz dele continua no ar enquanto ele vai morrendo."

    "Deus e o Diabo..." levaria Glauber Rocha a Cannes pela primeira vez e se tornaria um marco no cinema novo.

    Othon retomaria a parceria em "O Dragão da Maldade contra o Santo Guerreiro" (1969), como um boêmio professor que ele compôs inspirado no diretor: a barriga espichada, o cabelo bagunçado. "O Glauber não sabia. Só notou que eu o imitava quando viu na tela. Me xingou pra burro", conta, imitando com grunhidos o cineasta baiano.

    A experiência glauberiana marcou o ator, mas é o Paulo Honório de "São Bernardo" (1972), de Leon Hirszman, seu papel preferido, "um personagem ganancioso, que maltrata todo mundo e termina só".

    Othon Bastos comenta trabalhos com grandes diretores

    Também ali o papel parecia não se adequar ao tipo do ator: na obra de Graciliano Ramos, o personagem é ruivo, tem mãos grandes, lábios grossos. "Mas o Leon disse: 'quero o homem político que você é'."

    Em 2011, quando o Centro Cultural Banco do Brasil homenageou o ator em retrospectiva, ele tornou a ver o filme na telona. Teve um estalo melancólico na sessão: "Eu estava jantando com os meus mortos em cena: Joffre Soares, Mário Lago, Vanda Lacerda... Estavam todos mortos. Até o diretor, Leon, estava morto", conta e fica em silêncio. "Aí eu penso: que é isso? Não sou imortal. A qualquer hora eu também estou indo embora".

    A saúde teve um revés há um ano, quando uma infecção cutânea que ele descreve como "violenta", fruto de um corte numa mesa nos estúdios da Globo, o deixou internado por 16 dias. Ficou afastado da novela "Império", na qual seu elogiado mordomo Silviano galgava espaço na trama. "Me deram a chance de fazer um trabalho maravilhoso. Mas não é sempre que acontece."

    O ator não pensa em deixar uma biografia como legado. "Não permito que escrevam. O que eu tenho a dizer aos outros? Está tudo nos filmes."

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