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    CRÍTICA

    Biografia de Bolívar oscila entre tom vulgar e rebuscado

    GABRIELA PELLEGRINO SOARES
    ESPECIAL PARA A FOLHA

    29/08/2015 02h00

    Quando se abre um livro de mais de 600 páginas, as primeiras impressões são decisivas para moldar a atitude do leitor inclinado a percorrê-las. São particularmente decisivas quando o livro em questão se insere em um campo temático já bem demarcado por interpretações clássicas e acesas controvérsias.

    "Bolívar: O Libertador da América", escrito pela jornalista peruana, radicada nos EUA, Marie Arana, abre-se com uma narrativa quase literária, carregada de adjetivos e imagens que recompõem a cena com detalhes.

    "Quando ele surgiu da floresta mosqueada de sol, mal conseguiram discernir a figura sobre o magnífico cavalo." A passagem refere-se à entrada do general em Santa Fé de Bogotá, em 1819, quando as campanhas pela libertação do Vice-Reino de Nova Granada estavam avançadas.

    Nesse mesmo ano, Bolívar pronunciou o Discurso de Angostura perante uma Assembleia que discutiria os contornos da ordem republicana na nascente Gran Colômbia.

    É o momento escolhido pela autora para apresentar ao leitor um primeiro retrato da personagem, em sua compleição física, seus gestos, seus prazeres e sua admirável tenacidade. "Viúvo e solteirão convicto, era também um mulherengo insaciável."

    Divulgação
    Simon Jose Antonio de la Santisima Trinidad Bolivar y Palacios, conocido como Simon Bolivar foto:Divulgacao ***DIREITOS RESERVADOS. NÃO PUBLICAR SEM AUTORIZAÇÃO DO DETENTOR DOS DIREITOS AUTORAIS E DE IMAGEM***
    Reprodução de retrato do venezuelano Simón Bolívar

    Está definida uma fórmula que atravessa toda a obra. As façanhas políticas de Bolívar são arrematadas com relatos sobre as mulheres com quem se envolveu. Os relatos baseiam-se em fontes primárias e bibliográficas referenciadas nas notas do fim do livro, mas não são explicitadas, indagadas ou contrapostas no corpo do texto.

    Por se tratar inevitavelmente de uma biografia histórica, a vida de Bolívar é entremeada com informações sobre "sua época". Também essa abordagem privilegia marcos oriundos de trajetórias individuais.

    Por exemplo, ao lançar luz sobre 1783, o ano em que nasceu Bolívar, a obra pinça acontecimentos como, "no radiante palácio de Versalhes, uma emocionalmente frágil Maria Antonieta perdeu o tão esperado filho que carregava".

    Ou a figura no Vice-Reino do Peru a figura do curaca que, páginas adiante, volta a ser mencionado como "sujeito que se denominava Tupac Amaru 2º e alegava ser descendente direto do último regente inca".

    Nas poucas linhas dedicadas ao tema, a autora conclui: "No final das contas os Exércitos reais esmagaram a rebelião, o que custou aos índios umas 6.000 vidas". Séculos de tensão entre índios, espanhóis e criollos que vieram à tona na revolta liderada por Tupac Amaru foram assim resolvidos no livro.

    Da mesma forma, quando Maria Arana introduz o tema dos africanos transportados ao Novo Mundo, esclarece que foram "retirados de sua família, de seu país, de sua língua" e "trazidos como pescadores, caçadores de pérolas e lavradores". Não deixa de ser um recorte peculiar para se situar o lugar dos escravos nesta história.

    As conquistas de Simon Bolívar

    A narrativa engrena na medida em que Bolívar se embrenha nas campanhas militares. Ainda assim, tece conclusões arbitrárias, como a de que Bolívar "institucionalizou" o caudilhismo latino-americano ao conceder a seus generais poder político sobre regiões recém-libertadas. Em tempos de guerra, é difícil encontrar exemplos pelo mundo que discrepem muito disso.

    O livro tem problemas de tradução, equívocos como o de apresentar o naturalista Humboldt como "antropólogo" (informação depois corrigida) e a narrativa oscila entre a linguagem rebuscada e o estilo vulgar.

    Guarda, porém, passagens bem resolvidas, sobretudo no que diz respeito à densa trama dos anos de campanha militar e à relação de Bolívar com os diferentes segmentos da população, com seus generais e com a geografia. Talvez nesse ponto possamos reconsiderar primeiras impressões.

    BOLÍVAR
    AUTORA: Marie Arana
    TRADUÇÃO: Alexandre Morales
    EDITORA: Três Estrelas
    QUANTO: R$ 89,90 (608 págs.)

    GABRIELA PELLEGRINO SOARES é professora de história da América Latina na USP.

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