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    TV erra em não contemplar mais a elite, diz João Emanuel Carneiro

    LÍGIA MESQUITA
    ENVIADA ESPECIAL AO RIO

    31/08/2015 02h01

    João Emanuel Carneiro, 45, "acha" que já conseguiu entrar para o seleto viveiro das "seis ararinhas azuis", como o colega Aguinaldo Silva define os novelistas, "espécies raras e em extinção", donos do horário nobre na Globo.

    "É um lugar nada garantido. Se você se fiar nisso, tá ferrado", afirma ele à Folha, em um restaurante na orla de Ipanema, no Rio de Janeiro.

    Renato Rocha Miranda/Divulgação/TV Globo
    João Emanuel Carneiro, autor da nova novela das nove, 'A Regra do Jogo', posa em lixão cenográfico no Rio
    João Emanuel Carneiro, autor da nova novela 'A Regra do Jogo', posa em lixão cenográfico no Rio

    Três anos após o fenômeno "Avenida Brasil", que além de ótima audiência gerou o maior burburinho da última década na teledramaturgia e foi vendida para 134 países -um recorde-, Carneiro retorna ao ar nesta segunda (31) com "A Regra do Jogo".

    A trama das nove, com direção de Amora Mautner, tem a missão de recolocar a audiência na casa dos 30 pontos no Ibope -na Grande São Paulo, cada ponto equivale a 67 mil casas. Com índices abaixo dessa média, a antecessora "Babilônia" foi encurtada em dois meses.

    A novela, um thriller, parte da premissa filosófica do que seria o certo e o errado. O protagonista, interpretado por Alexandre Nero, é um bandido que se vende como bom moço (tem uma ONG de fachada) e se apaixona pela ideia de se tornar santo.

    O autor vê na trama um paralelo com o momento político atual do Brasil. "Me fascina o caráter das pessoas. Até que ponto elas podem ir, se redimir", diz. "Brecht falava que quem tem fome não pode ter moral. Nós brasileiros somos coluna do meio muitas vezes, perdoamos muito."

    Também se mostra disposto a "olhar em volta" ao retratar o país. Para ele, a classe C "já foi plenamente contemplada" pela TV brasileira, ao contrário das classes A e B.

    "Quando fiz 'Avenida Brasil', tinha a reflexão de que as tramas tratavam a elite sempre igual, o 'rico de novela. Aquela 'mansão da milionária' não mais retrata o Brasil."

    Leia as respostas de Carneiro para a Folha.

    *

    Novela masculina
    É minha primeira novela centrada num homem. O Romero Rômulo [Nero] é um santo torto. É alguém que quer tentar se emendar, se acertar. A novela é a trajetória dele, pendendo entre o bem e o mal.

    "Avenida Brasil"
    Temo comparações, mas não é algo fundamentado. Elas são totalmente diferentes. O medo de ser rejeitado e ser chato tem que acompanhar a gente o tempo todo. Se você perde esse medo, tá ferrado.

    A grande coisa da novela é inventar um brinquedo novo pra mim. O que eu já fiz não tem graça. Não existe métier. Cada vez você é posto à prova.

    Rico de novela
    A classe C já foi plenamente contemplada há anos. A gente vive num país que é classe C. Ponto. Já é. Se a TV errou em algo, foi em não contemplar mais as classes A e B. Este público quer ver coisas passadas no Brasil, e em português.

    Quando fiz "Avenida Brasil", uma reflexão que tinha é que as tramas tratavam a elite sempre igual, o "rico de novela". Aquela "mansão da milionária" não retrata mais o Brasil. Tem que olhar em volta.

    Sem improviso
    Iniciamos o processo da novela há dois anos. Não creio na mitificação do improviso, em que antigamente a TV se baseava, com testes de elenco feitos com a novela no ar. "Da Cor do Pecado" [2004] estreou com 80 episódios prontos.

    Público inteligente
    O público é mais inteligente do que a gente imagina. Menosprezá-lo é o maior erro. É como uma criança: se você leva-la ao Museu do Prado, ela vai adorar aquelas pinturas. Se só leva ao parque de diversão, só vai conhecer aquilo.

    Inovação
    As minhas novelas têm a volta para uma estrutura de narrativa mais antiga, mas com personagens contraditórios. Inovar não tem que ser uma preocupação. A novela é quase um serviço público, pertence a quem vê. Você passa a fazer sucesso quando começa a se conectar com as pessoas, e não fazer o que elas esperam.

    Audiência
    O Brasil ainda vê muita TV. Assim como houve a saída para a internet, pode haver uma volta para a TV aberta.

    Acompanho a audiência, mas não fico refém. Minhas histórias principais nunca mudaram, mas já mexi em paralelas. Em "A Favorita" [2008], quando a Lilia Cabral apanhava, aumentava a audiência. Ela apanhou muito [risos].

    Se me pedissem para alterar a história [por baixa audiência], falaria para mandar alguém escrever. Bateria o pé.

    Autocensura
    Tem um bom senso quando pensa que entra na casa de 40 milhões de pessoas. Não boto palavrão, personagem fumando cigarrinho, tomando uisquinho de dia. Vão reclamar. Poderia subverter isso, mas aí tem classificação indicativa.

    Cedo em algumas coisas para ter outras maiores, como abordar temas mais complexos.

    Exportação de folhetim
    "Avenida Brasil" tem "plot" original. Uma coisa que a ficção brasileira não faz bem é drama. A América Latina é o lugar do drama, é a lágrima.
    Minhas novelas têm trama central forte e pouco personagem. Quando tem uma novela com cem personagens, sem uma história forte, fora do Brasil você não tem nem leitura.

    Comunidade fictícia
    Disseram que o subúrbio [de "Avenida Brasil"] não existia em lugar nenhum, só na minha cabeça. E é verdade, é ficção. Para o Morro da Macaca, de "A Regra do Jogo", não ambiciono nada muito realista nem documental. É uma favela que deu certo, com turistas, classe média indo morar lá. É a alegoria de como vejo essa favela, a classe média, o asfalto, os ricos do Rio.

    Pen drive da Nina
    Sou paleolítico da internet. Foi um escorregão, tive muita vergonha [em "Av. Brasil", Nina perde as fotos impressas que usava para chantagear Carminha, sem ter cópia num pen drive]. Fiz um curso e na novela vai ter hacker, nuvem.

    Merchan social e polêmicas
    Se for da trama, pode ser que eu aborde algum tema polêmico. De fora para dentro ter que discutir determinados temas me parece programático, engessa a história.

    Mas como quase todas as novelas já se dedicam tanto a fazer esse tipo de polêmica, as minhas podem se dedicar a falar de temas novos para as pessoas, dinâmicas, conflitos novos. Eu como espectador não me seduzo tanto por polêmicas programáticas.

    Como vê o Rio
    Sou carioca. O Rio é um balneário com muita herança, já foi um império, tem um passado glorioso. E onde a ideia de trabalho é muitas vezes um insulto, as pessoas vão se virando. A relação pessoal é tão importante, estar na festa é tão importante.

    E tem isso tanto na favela quanto no asfalto. O núcleo do personagem do Marcos Caruso vai mostrar um pouco isso, ele é um bon vivant decadente.

    Gênero policial
    Eu amo romance policial, coleciono todas revistas de literatura policial. Aí escolhi fazer um thriller desta vez. Mas em sempre humor também, drama.

    A novela é uma composição variada, é como uma refeição para a família. Tem que ter arroz, feijão, carne, uma farofa, uma salada. Não posso fazer um capítulo inteiro de thriller.

    Processo criativo
    Eu tenho os movimentos dos personagens para cada uma das 28 semanas. Posso ter ideias melhores, mudar o que já tenho. Mas eu já tenho.

    Os personagens falam na minha cabeça, só consigo escrever as cenas a partir dos diálogos, escrevo todos. Os colaboradores [Alessandro Marson, Antonio Prata, Claudio Simões, Fabio Mendes, Paula Amaral e Thereza Falcão ] podem arredondar, colocar uma fala, dar um sabor.

    É um trabalho de chinês aposentado, uma maneira antiga de se fazer novela. Não sei delegar muito.

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