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    Fernando Meirelles dirige primeira ópera e diz se sentir 'um estagiário'

    ANNA VIRGINIA BALLOUSSIER
    ENVIADA ESPECIAL A BELÉM

    08/09/2015 02h03

    Fernando Meirelles, que agora se identifica no Twitter apenas como "diretor de óperas", dá o resumo da sua: a uma semana de completar 60 anos, na sexta (11), o responsável por um marco do cinema nacional ("Cidade de Deus") e produções internacionais ("Jardineiro Fiel") voltou a se sentir "como um estagiário".

    Pausou o cinema (nada em vista por ora), a TV (já, já volta) e a Olimpíada (dirigirá o show de abertura no Rio) para se dedicar à montagem de "Os Pescadores de Pérolas", ópera do francês Georges Bizet (1838-1875), famoso por "Carmen".

    Sua estreia no palco será nesta quarta (9), no Theatro da Paz, em Belém –onde mora desde agosto, num hotel. E, se a crítica tiver algum problema com isso, ele diz que nem teria como dar a mínima.

    "Não leio [resenhas]. Se for positiva, você fica achando que é o que não é, então já é péssimo", diz à Folha, segurando um saco plástica com jambos que a produção lhe arranjou.

    A fruta do Norte, da família da goiaba, é doce -tudo o que críticas negativas não são.

    "Também tomei muita porrada." De uma ele não esquece: horas após lançar "Ensaio sobre a Cegueira" no Festival de Cannes de 2008, chegou a opinião da revista "Variety". "Terminava com uma frase lapidar: 'É um filme que nunca deveria ter sido feito'. Olha que beleza, você está na festa da sua obra e lê essa merda."

    Não foi às cegas que Meirelles embarcou no Festival de Ópera, a convite da Secretaria de Cultura do Pará. Rodeou-se de conhecidos seus, do diretor de arte Cassio Amarante ("Central do Brasil") à figurinista Verônica Julian ("Xingu"). A regência é do maestro Miguel Campos Neto, cofundador da novaiorquina Chelsea Symphony. No coro, músicos locais, entre eles dois policiais, uma manicure e um taxista.

    Sossegou: nada indicava que a estreia no Norte daria um novo "Fitzcarraldo", filme de Werner Herzog sobre o devaneio de um homem que quer construir uma casa de ópera amazônica. "Cenário, figurino e cantores vão ser bons. A parte de vídeo [há projeções em cena], sei fazer esse troço. A gente pode não acertar, mas uma vergonha não vai ser."

    Sossegou em partes. Meirelles está com sapinho na boca, que estourou por causa do nervosismo, aposta. Na sexta passada (5), penava para escolher como deveria ser a poderosa cena final da história sobre um triângulo entre dois pescadores e uma sacerdotisa no Ceilão (atual Sri Lanka, na Ásia).

    "Um 'bromance'", resume, usando a expressão em inglês para a amizade masculina. Explica o dilema da antiguidade cantando Roberto Carlos: "Estou amando loucamente/ A namoradinha de um amigo meu".

    AMADOR

    Antes, a ópera tanto fazia para Meirelles. "Era um perfeito amador. Nem amador, porque eu não amava o gênero."

    Diretor artístico do Theatro São Pedro, em São Paulo, Luiz Fernando Malheiro vê vantagens, "do ponto de vista midiático", em alguém que "chame a atenção de um público não aficionado para essa arte".

    Acha até válido, "apesar do gosto um pouco duvidoso", heterodoxias como o vídeo que o cineasta fez para divulgar sua ópera: o tenor Fernando Portari e o barítono Leonardo Neiva cantando no chuveiro.

    "O que acho um pouco desrespeitoso é chegar dizendo: 'Não entendo nada disso'. Já ouvi de um diretor teatral famoso [após comandar uma ópera no Municipal de SP]. E ele ganhava cachê polpudo."

    O musicólogo Leandro Oliveira destaca que, em 2008, Woody Allen dirigiu uma ópera de Puccini e alegou que "não sabia o que estava fazendo". A crítica adorou. No Brasil, lembra da cineasta Carla Camurati, por anos à frente do Theatro Municipal do Rio e de montagens "nada além de medíocres", segundo Oliveira, para óperas como "Carmen".

    O que importa, no fim, é dominar o "jogo teatral, que está muito além das técnicas de produção para filmes e séries", diz. "Woody é notoriamente um grande diretor de atores."

    O ordenado de Meirelles está na média do pago para os diretores do festival, segundo a organização: R$ 35 mil.

    E, em sua defesa, não é um neófito total. Tocou violino por dois anos no conservatório da FAU, a escola de arquitetura da USP, onde se diplomou. Lá criou, nos anos 1970, uma "opereta bufa", titulada como "um espanhol tentando falar italiano": "Cartófole i Bastardi, la Vendedora di Chiclet".

    O tenor Wagner Wrona fez parte do grupo. Hoje diretor artístico do evento em Belém, acredita que o amigo "foi picado pelo bichinho da ópera".

    Meirelles insiste: "a beleza da coisa" é não precisar "se afirmar", pois não pretende "fazer carreira". Até se sentiu confortável para dar pitacos solenemente ignorados pela equipe, diz, rindo. "Sugeri de leve cortar umas música. Nem fui considerado pelo maestro. Pensei, 'pô, vamos agilizar esse negócio aí?'. O cara canta lá: 'Eu te amo muito, meu amor, te amo, amor, eu amo..."

    No fim, Meirelles acha que imprimiu aqui e acolá, como na troca de cenários, "ritmo mais ágil do que a ópera normal, que é muito mais lenta".

    Para Wrona, "só os sarcófagos" implicarão com a entrada do forasteiro na bolha operística. Completa: ao projetar num telão cenas "de amor de cama", o "amador" deu um "toque poético a um dueto de amor que é bastante careta".

    TV E OLIMPÍADA

    Enquanto conversa com a Folha, Fernando Meirelles testa jogar no ar-condicionado do Theatro da Paz uma essência de patchouli (planta nativa das Índias Orientais e popular no Pará). A ideia não avança. "Parece que muita gente é sensível a perfumes."

    Com Meirelles, a ópera parece um brinquedo novo na mão de criança. Delira até com árias sobre a "batalha sangrenta pelo poder" na política brasileira. Ele, que dirigiu as primeiras campanhas políticas do PT, nos anos 1980, e hoje apoia Marina Silva, imagina "uma grande tragédia com o tenor Eduardo Cunha [presidente da Câmara]".

    Gabriel Cabral/Folhapress
    Fernando Meirelles observa ensaio no Theatro da Paz
    Fernando Meirelles observa ensaio no Theatro da Paz

    Já o cinema foi, por ora, para o fundo do baú de projetos.

    Pós-Belém, cuidará de dois produções internacionais para a TV (uma EUA-Canadá e outra com a BBC). Tem ainda a abertura da Olimpíada do Rio, ao lado de Andrucha Waddington e Daniela Thomaz e "com orçamento que está mais para escola de samba, 20 vezes menor do que o de Pequim".

    Meirelles vê uma "crise de público" no cinema nacional. Se antes faltava meios para produzir, hoje o problema é encontrar onde exibir tanto filme. "O Brasil equacionou a questão da produção. Faz uns 130 filmes por ano. Mas isso é muito, seriam três lançamentos por semana. Como você quer que seu filme apareça?"

    Muitas pérolas, como o premiado "O Lobo Atrás da Porta" (Fernando Coimbra), "passam e ninguém percebe". O filme teve 26 mil espectadores, contra 4 milhões para a comédia nacional "Até que a Sorte nos Separe 2" no mesmo 2014.

    O fetiche pela tela grande é forte, mas os cineastas precisam entender que "parte da produção necessariamente tem que ir para a TV, para os serviços 'on demand'", afirma.

    Caso do documentário que Carlos Nader roda sobre sua primeira ópera, que está sendo negociado para a TV paga.

    No dia 15, o Meirelles da ópera estreará no cinema. Sua peça será exibida ao vivo em salas de São Paulo, Santos, Rio, Curitiba, João Pessoa, Brasília, Florianópolis e Porto Alegre. O preço é R$ 60 (no Theatro da Paz o ingresso no camarote, o mais caro, sai por R$ 70). Para comprar: www.cinelive.com.br.

    Os Pescadores De Pérolas
    quando qua. (9), sext. (11), dom. (13) e ter. (15), às 20h
    onde Theatro da Paz, r. da Paz, s/nº, Belém, tel. (91) 4009-8750
    quanto R$ 20 a R$ 70 (esgotado)
    classificação 14 anos

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