Com esse título simpático, "Ãrrã", espetáculo escrito e dirigido por Vinicius Calderoni, expande conquistas capitaneadas por uma nem tão nova geração de dramaturgos que (ainda) não alcançou o sucesso estrondoso que mereceria ter.
Digo "geração de dramaturgos" pois é com o texto que "Ãrrã" vai muito longe, determinando evoluções formais inclusive no campo da performance.
"Arrã" tem dezenas de personagens. Numerosos, eles perdem consistência. Diluídos, outro organismo ocupa o lugar, permitindo que o espectador experimente noções estranhas de tempo e de espaço.
De todas as histórias interpretadas por Luciana Paes e Thiago Amaral (são dois atores, mas poderia ser um e poderiam ser mil) citemos duas.
Lenise Pinheiro/Folhapress | ||
Thiago Amaral e Luciana Paes são únicos atores da peça que tem dezenas de personagens |
A primeira: homem dirige carro e voz feminina de GPS acrescenta norte psicossomático ao trajeto. A segunda: cachorro morre no colo do dono, mas antes expõe mazelas do passado.
Parecem situações fantásticas e não são, pois a composição da rede de afetos desencadeia no espectador a percepção de um estado mental e não de uma ficção irreal, permite testemunharmos cães falantes e robôs sentimentais.
O filme "Asas do Desejo", de Wim Wenders, fez algo similar em 1987. Só que, entre o espectador e a rede múltipla de vozes que vimos passar pelas ruas de Berlim, há a figura de anjos. São eles que escutam o pensamento alheio e que costuram as subjetividades. Ali sim há representação de perfil fantástico.
Em "Ãrrã", somos nós, na plateia, os anjos, os demônios. As passagens de uma história para outra são mais significativas do que as histórias em si, pois é no corte, na tentativa de domar algo que tem vida própria (o pensamento) que reside a questão desta peça fenomenal.