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    depoimento

    Como Carmen Balcells mudou a minha vida

    LUCIA RIFF
    ESPECIAL PARA A FOLHA

    26/09/2015 02h40

    Nós nos conhecemos em janeiro de 1983, numa entrevista de emprego, e esse encontro mudou a minha vida para sempre.

    Até aquele momento, eu não sabia o que era uma agência literária, e, apesar de ler muito, não prestava a menor atenção no nome das editoras que publicavam os meus livros de cabeceira.

    Também não sabia que eu poderia ser uma agente, ou sonhar em ter um negócio próprio. Tudo que eu queria, antes do encontro, era conseguir um bom emprego.

    Guillem Valle/The New York Times
    FILE — Carmen Balcells, the literary agent and confidante to some of the greatest Latin American and Spanish authors across the globe, including García M√°rquez, Mario Vargas Llosa and many more, died Sunday, Sept. 20, 2015 in Barcelona. She was 85. Balcells at her home in Barcelona in 2014. (Guillem Valle/The New York Times) ORG XMIT: NYT3 ***DIREITOS RESERVADOS. NÃO PUBLICAR SEM AUTORIZAÇÃO DO DETENTOR DOS DIREITOS AUTORAIS E DE IMAGEM***
    A agente literária Carmen Balcells, uma lenda do mercado editorial, que morreu no último domingo (20)

    Formada em psicologia, com dois filhos pequenos, queria trabalhar e, se possível, continuar estudando.

    Em pouco mais de uma hora, tudo mudou: Carmen me estimulou, me abriu caminhos, me falou sobre o papel do agente literário, seu importante escritório em Barcelona, a agência que ela havia montado no Brasil em 1979.

    Falou sobre seus autores, sua equipe, os editores e tudo mais. Ela me mostrou o quanto o mercado editorial pode ser apaixonante –difícil, incerto, mas ainda assim ela não conhecia ninguém que tivesse abandonado o mundo dos livros.

    Carmen foi firme e ao mesmo tempo carinhosa; exigente, mas sempre bem-humorada. Disse que precisava de ajuda na filial brasileira. E me fez sentir bem-vinda. Fui totalmente seduzida pela agência, e nunca mais seria a mesma.

    Depois de uma temporada feliz no escritório brasileiro da Carmen, tive uma experiência trabalhando em editoras. Já no final de 1989, um telefonema que ficou histórico: "Lucia, você se lembra de mim?" –como se fosse possível esquecer. Carmen me convidou a voltar. Senti-me honrada, claro, e aceitei o desafio.

    Em 1991, abrimos juntas uma nova agência, a BMSR (Balcells Mello e Souza Riff –eu, Carmen e minha irmã). Tive a oportunidade de passar uma temporada em Barcelona, percorrendo todos os departamentos, convivendo com toda a equipe, conversando com todos, e em especial com a própria Carmen.

    Ela me contou casos, deu exemplos de vários tipos de negociações, me falou da organização da agência etc.

    Vi o quanto ela era próxima dos seus autores, num nível pessoal mesmo –a ponto de ajudá-los financeiramente em muitas situações, ser amiga íntima, se importar com cada um, com suas famílias. O relacionamento com ela ia muito além de manuscritos e contratos –e isso era especial.

    Nessa ocasião, Carmen me ensinou a força de um bom contrato –e me passou uma dica preciosa (dentre várias): todo contrato deve ter uma cláusula de término clara.

    Carmen falou da dor quando percebia que uma negociação não havia tido o melhor resultado possível –como uma sensação de solidão, que só ela era capaz de sentir e sofrer, tamanha sua responsabilidade perante os autores.

    Conversamos também sobre o quanto ela se dava para a agência, a ponto de ter deixado sua própria família em segundo plano.

    Voltei ao Brasil e enfrentei uma parada duríssima (hiperinflação, plano Collor etc etc). A vida seguiu acelerada em Barcelona, e fomos em frente, fazendo o melhor possível por nossos respectivos autores.

    A BMSR teve uma trajetória independente de Barcelona –ainda que tenhamos continuado sempre amigas. Em 2004, Carmen se aposentou, ao completar 70 anos de idade. Foi então que decidi comprar suas cotas da sociedade e formei, junto com meus dois filhos, Laura e João Paulo Riff, a Agência Riff.

    Carmen mandou uma carta linda, que me emocionou muito. As coisas são o que são. Mas foi na despedida que me dei conta do privilégio que foi ter convivido com essa mulher tão extraordinária.

    Carmem foi a maior agente literária de todos os tempos. Pode-se dizer que ela foi uma das primeiras a profissionalizar a relação autor/editora.

    Revolucionou a literatura latino-americana, mudou o parâmetro dos contratos de edição, foi apaixonada pelo Brasil e fez muito por nossos autores –como a querida Nélida Piñon, de quem foi amiga-irmã, Clarice Lispector, Rubem Fonseca, Autran Dourado, entre outros. A turma do livro deve muito a Carmen –mesmo sem saber.

    LUCIA RIFF é agente literária, fundadora da Agência Riff, a mais importante do Brasil, que representa Drummond, João Cabral, Ariano Suassuna, Erico Verissimo e Rubem Fonseca, entre dezenas de outros autores

    *

    Morta no último domingo aos 85 anos de causa não divulgada, Carmen Balcells foi a agente literária que representou os maiores escritores latino-americanos do século 20, entre eles Gabriel García Márquez (que a chamou de "Mamá Grande"), Mario Vargas Llosa, Pablo Neruda e Julio Cortázar.

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