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    CRÍTICA

    Em novo livro, Ingrid Betancourt vira escritora banal de autoajuda

    MARCELO MIRISOLA
    ESPECIAL PARA A FOLHA

    01/10/2015 02h47

    Os candidatos a presidência, os mártires e as celebridades em geral deviam ser alertados de que nem sempre a ficção é uma prostituta dócil e confiável. Às vezes ela deixa de ser apenas um apêndice no currículo do indivíduo e acaba comprometendo a reputação do mesmo.

    Quase que Ingrid Betancourt quebra a cara com "Linha Azul" –segunda experiência "literária" depois do ótimo "Não Há Silêncio que Não Termine".

    Julia apaixona-se por Theo. Ela é uma espécie de vidente que sai do corpo, e ele é aquilo que os místicos do século 20 chamavam de "ativista político". Década de 1970. A Argentina vive os anos de chumbo.

    Apaixonada e engajada na luta armada contra a ditadura, Julia é capturada pelos milicos. E aí o leitor há de se perguntar: que diabo de vidente é essa que não prevê o próprio futuro? Pois é. A vidente e o "jovem idealista" são do tipo que "engravidam juntos", que se imaginam diferentes "nós não somos assim" e que farão a autora apostar nessa tese/lição até o final do livro.

    Rodrigo Capote/Folhapress
    SAO PAULO - SP - 29.09.2010 - Ingrid Betancourt durante palestra no evento promovido pela HSM no Teatro Alpha em Sao Paulo. (Rodrigo Capote/ Folhapress MUNDO). ***EXCLUSIVO FOLHA*** 4587
    Ingrid Betancourt durante palestra no evento promovido pela HSM no Teatro Alpha, em São Paulo

    O casal modorrento é separado. Julia está gravida!

    Todos sabemos que Ingrid Betancourt foi, é e sempre será a refém mais notória das Farc, que a autora é PhD em passar maus bocados nas mãos de assassinos, psicopatas, terroristas, mercenários e idealistas, estes últimos os mais nefastos, a meu ver.

    PAIXÃO NO CATIVEIRO

    Nota de realidade. Ingrid e o ex-senador colombiano Luis Eladio Pérez, o Lucho, experimentaram uma paixão no cativeiro. Claro que essa experiência guarda afinidade com os perrengues dos personagens Julia e Theo. E, para quem gosta de sadismo, os relatos e as impressões sobre torturas, escritos por uma vítima especialista, salvam o livro. Exemplo: "Chorou semanas a fio por se descobrir viva, por ainda ter um corpo sobre o qual eles podiam tripudiar". Etc etc.

    Se Ingrid Betancourt se limitasse apenas à experiência no cativeiro teríamos um documento interessante do feitio de "Não Há Silêncio que Não Termine". Mas as lições de redenção e/ou tentativas de reconciliação com si mesma a transformam numa escritora de autoajuda das mais banais, com direito a luta por direitos humanos e contemplação de olmos e horizontes breguíssimos –e a coisa só faz piorar quando uma tal de Nona Fina é invocada a dar seus pitacos metafísicos.

    Julia e Theo conseguem, cada um a seu modo, fugir do cativeiro. Depois de um tempo o casal se reencontra, entretanto Julia não é mais Ingrid, e Theo, à exceção "dos punhos cerrados que traem uma violência surda", não é mais Eladio, e Eladio não é mais Lucho.

    A Linha Azul
    Ingrid Betancourt
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    Ingrid Betancourt está condenada a sofrer, mas com "dignidade": parece que é isso o que "Linha Azul" quer dizer. Ela sofre por ter recuperado a liberdade e por ter perdido Lucho para sempre. Sofrem os leitores mais exigentes, sofre o resenhista, e sofrem todos nesse híbrido que está longe de ser um depoimento, e que não convence como ficção.

    A LINHA AZUL
    AUTORA Ingrid Betancourt
    TRADUTORA Julia da Rosa Simões
    EDITORA Objetiva
    QUANTO R$ 44,90 (280 págs.)

    MARCELO MIRISOLA é autor de "O Herói Devolvido" (34) e "Charque" (Barcarolla)

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