Alguns espetáculos de perfil político-discursivo causam impacto porque são contundentes naquilo que se propõem a defender ou atacar. Outros, e este é o caso de "BR-Trans", criado por Silvero Pereira e Jezebel de Carli, conseguem mais, fazem o discurso abrir-se para sequências de enigmas. Esses valem mais a pena.
Num primeiro olhar, o solo em que Pereira incorpora travestis e transexuais tem um grande defeito: denuncia a violência contra pessoas –cujas identidades são expostas a partir de pesquisa documental– mas deixa de deslocá-las do papel chapado de vítimas; permanecem subdesenvolvidas as sugestões de perfis mais complexos do que os que são apresentados.
Entraremos em contato com a ternura de uma presidiária, por exemplo, mas sairemos do espetáculo sabendo pouco sobre o crime que cometeu.
Importa? Sim, na medida em que uma construção de vulto psicanalítico acaba restrita ao plano moral e ético –e ainda que se revele ali um mito esfacelado pelo contexto histórico, o mito da Geni, que serve para apanhar e que "é feita" para cuspir.
Adriano Vizoni/Folhapress | ||
Silvero Pereira em ensaio de "BR-Trans" |
A peça termina com número dedicado à personagem de Chico Buarque.
Apesar da restrição, as transformações a que Pereira se submete, aos olhos da plateia, subentendem um estado de conflitos de gêneros e de personalidades, com recuos e avanços íntimos desferindo golpes na realidade.
Pereira tem um talento colossal de transmutar-se, mas não como fazem os bons atores na tradição do drama, como fazia por exemplo Marco Nanini em "O Mistério de Irma Vap". Pereira é performático, entra em contato com seus entrevistados para roubar-lhes algo. E de fato rouba, digere, deixa moldar-se pelo estranho, como uma argila humana. A natureza é de tornar-se e não de interpretar.
É possível compreender a peça como um acidente, criado a partir do desejo de reter memórias prestes a serem apagadas pela intolerância.
As imagens de travestis assassinados e a exposição de números inaceitáveis de violência aparecem como ruídos graves diante da imagem de um sujeito disposto à graça, e que expressa dramas e desejos dublando músicas de Maria Bethânia, Lana Del Rey.
O acidente está na irrupção de uma liturgia cênica que apresenta o intérprete transformado pelo próprio papel, preso à armadilha de afastar de si a possibilidade de um olhar crítico sobre figuras reais, em um espetáculo de perfil documental. Um trabalho manco, e ainda assim bastante potente.