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    Vencedor da medalha Robert Capa abre mostra sobre violência no Brasil

    ANNA VIRGINIA BALLOUSSIER
    DE SÃO PAULO

    05/10/2015 02h00

    Se você é um fotógrafo de guerra, provavelmente vai querer estar no lugar errado, na hora errada –como pegando carona numa camionete de rebeldes que lutavam contra a ditadura de Muammar Gaddafi (1942-2011), na Líbia.

    André Liohn, 40, é esse cara. Há dez anos, ele pula de nação em nação registrando conflitos, da turbulência civil na Somália à Primavera Árabe.

    Em 2012, virou o primeiro sul-americano a ganhar a Medalha de Ouro Robert Capa, uma das maiores láureas do fotojornalismo, pelo projeto Quase Amanhecer na Líbia.

    No mesmo ano, o fotógrafo natural de Botucatu (interior de São Paulo) foi atrás das notícias de uma guerra particular. A partir de sábado (10), expõe na Caixa Cultural São Paulo 60 imagens sobre a violência em várias esferas do Brasil.

    A mostra "Revogo" abre com o retrato acima, do menino e a pistola. "As flores, marias-sem-vergonha, ilustram como são nossas crianças: nascem do nada, mas são frágeis, morrem do nada também", diz Liohn à Folha em seu conjugado alugado no edifício Copan, em São Paulo.

    Liohn apontou sua lente para enterros, policiais dando uma dura em jovens negros e uma menina alucinada com o éter da garrafa plástica. Lê-se em sua camisa puída: "Diversity Girl" (garota diversidade).

    A imagem da mulher-objeto é uma constante. Numa delas, a anônima arria a calça e revela a bunda. Acima, o outdoor de uma faculdade diz: "Onde você quer chegar?".

    A foto principal de "Revogo" traz uma garota sem calça dentro de um cercadinho, apalpada por vários homens –dá para ver o movimento de uma mão prestes a aplicar-lhe uma palmada.

    Ela aceitou o desafio promovido num baile funk: concorrer com mulheres pelo título de "a mais devassa". Prêmio: brindes de uma cervejaria.

    "Temos a devassidão como atributo. Ela está dessensibilizada, assim como os rapazes em volta. É difícil não correr o risco de ser moralista", diz ele.

    Liohn batizou a mostra com o substantivo em desuso para o ato de revogar –no caso, "certezas às quais nos agarramos, como a de que reduzir a maioridade penal é solução".

    LENHA NA FOGUEIRA

    Liohn, que não gostava da escola, segundo ele feita "para sentenciar crianças", foi ser lenhador na Suíça aos 18, sem visto. Acabou na Noruega, onde estudou comércio exterior.

    Lá pelos 30, comprou uma câmera. Naquela "terra idílica", preferiu retratar viciados em heroína. Ganhou um prêmio norueguês pela foto de um dependente atrás de uma garrafa de vodca rolando no chão.

    Lá e cá, todos lidam com suas guerras particulares. Ele não identifica quem são as pessoas na foto nem onde ela foi feita. Há uma única legenda –"Brasil, hoje"– para as 60 imagens. Com isso, quer que o público "se sinta confuso sobre quem é o outro" que elegeu como vilão da história.

    Também percebe como "ato de violência" o "darwinismo social". Quando "um pai transfere o filho da escola pública à particular", por exemplo. "Como o pássaro que migra para um lugar e, gerações depois, não reconhece o outro como parte da espécie", compara.

    Entre sua "espécie", Liohn é descrito ora como "arrogante", ora como "camicase". Fotógrafos colegas dizem que ele gosta de contar vantagens e não é afeito a usar capacetes.

    "Éramos amigos, mas ele começou a agir como um babaca, criticando em público minhas fotos com iPhone e minhas intenções", diz o americano Michael Christopher Brown (leia abaixo). Para ele, Liohn "invejou a atenção que meus retratos ganharam".

    "O André é muito ousado, e isso significa pôr sua vida em risco atrás de uma imagem forte", afirma o fotógrafo da Folha Joel Silva, que foi à Líbia.

    Quando se conheceram, Liohn subia numa camionete rebelde, "alvo fácil de ataques aéreos". "Ele falava: 'Posso morrer, mas posso arrebentar, fazer 'a' foto da guerra'."

    O inglês Tim Hetherington e o americano Chris Hondros fizeram várias delas antes de serem atingidos por um morteiro de Gaddafi, em 2011. Liohn os viu no hospital e noticiou a morte dos colegas no Facebook, o que gerou reprimendas por supostamente querer "aparecer" na situação. "Não me importei nem com elogios nem com críticas", diz.

    Morto em 1954, ao pisar numa mina na Indochina, Robert Capa disse: "Se suas fotos não estão boas o suficiente, é porque você ainda não está perto o suficiente". Liohn vem dessa escola do fotojornalismo.

    Críticas à capitalização sobre a tragédia alheia se repetem nos anos –mais recentemente, houve a do corpo do sírio de três anos à beira-mar.

    Em 1994, o sul-africano Kevin Carter ganhou um Pulitzer pela imagem do menino subnutrido aparentemente espreitado por um abutre. Veio a polêmica: por que fez a foto em vez de salvar a criança? Em depressão, Carter se matou.

    Liohn não hesita ante mortos e feridos –já registrou corpos em decomposição de vítimas de tortura. "A boa fotografia é intrusiva", diz e emenda analogia médica. "Se você fala, 'sinto algo no braço', talvez para curar o médico tenha que tocá-lo e fazê-lo sentir mais dor, para ver em que ponto sua dor fica insuportável."

    Torcer o braço da realidade, portanto, seria uma forma de escancará-la para o mundo, doa a quem doer.

    REVOGO
    QUANDO ter. a dom., das 9h às 19h; de 10/10 a 6/12
    ONDE Caixa Cultural, praça da Sé, 111, tel. (11) 3321-4400
    QUANTO grátis; 16 anos

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