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    Nos 166 anos da morte de Edgar Allan Poe, veja 3 dicas pop e leia um conto

    GABRIELA SÁ PESSOA
    DE SÃO PAULO

    07/10/2015 17h00

    A morte de Edgar Allan Poe, há exatos 166 anos, é um mistério que talvez nem mesmo seu famoso detetive, Auguste Dupin, conseguiria resolver.

    Não se sabe exatamente o que levou o escritor, um dos fundadores da ficção policial e pai dos contos de terror, a procurar um hospital em Baltimore, nos EUA, em 3 de outubro 1849.

    Ele circulava pelas ruas da cidade em estado de delírio, usando roupas emprestadas e incapaz de explicar como havia chegado, naquela condição, à cidade.

    Reprodução
    ORG XMIT: 365801_0.tif O poeta, contista e romancista Edgar Allan Poe e elementos do imaginário de sua obra em ilustração do artista plástico inglês David Gough. (Foto Reprodução)
    O poeta, contista e romancista Edgar Allan Poe em ilustração do artista plástico inglês David Gough

    Especula-se que Poe tenha parado por ali no caminho até a Filadélfia, saindo de Richmond cinco dias antes. Morreu quatro dias depois, em 7 de outubro, no hospital.

    Há diversas teorias que tentam explicar a morte do escritor, segundo o jornal "Los Angeles Times". Há quem diga ele tenha sido envenenado, outros culpam o abuso do álcool (falido, havia se rendido ao alcoolismo após a morte da mulher, Virginia), ou mesmo uma gripe.

    Um dos grandes leitores de Poe e tradutor de sua obra para o Espanhol, o belga-argentino Julio Cortázar (1914-1984) escreveu uma breve biografia do autor americano, publicada no Brasil no segundo volume de sua "Obra Crítica" (editora Civilização Brasileira).

    Na reconstituição de Cortázar, Poe, já chegou a Baltimore em 29 de setembro de barco. Dali, esperava tomar um trem até a Filadélfia, "mas era preciso esperar várias horas. Numa dessas horas seu destino foi selado".

    "Sabe-se que já estava ébrio quando visitou um amigo. O que aconteceu depois é matéria apenas de conjetura. Abre-se um parêntese de cinco dias, ao fim dos quais um médico, conhecido de Poe, recebeu uma mensagem apressadamente escrita a lápis informando que um cavalheiro 'um tanto mal vestido' precisava urgentemente de sua ajuda", narra Cortázar.

    Antes de morrer, Poe teria perguntado se restava alguma esperança. "Como lhe disseram que estava muito grave, retificou: 'Não quis dizer isso. Quero saber se há esperança para um miserável como eu'. Morreu às três da madrugada do dia 7 de outubro de 1849. 'Que Deus ajude a minha pobre alma', foram suas últimas palavras."

    O que escreveu em seus 40 anos de vida —poemas como "O Corvo" e contos como "Assassinatos na Rua Morgue" ou "Carta Roubada– segue influenciando gerações de escritores (e músicos, roteiristas, artistas de toda a ordem).

    Abaixo, a "Ilustrada" indica três referências modernas a Edgar Allan Poe e publica um de seus contos de arrepiar: "O Retrato Ovalado".

    Poe no cinema

    Entre as tantas versões dos mistérios do escritor levados ao cinema, recomendamos prestar atenção na mais recente: a animação "Extraordinary Tales", que estreia nos EUA em 23 de outubro, contando cinco histórias criadas por Edgar Allan Poe.

    O time de dubladores faz bonito: Bela Lugosi, Guillermo del Toro e Christopher Lee (o eterno Drácula, morto em junho deste ano).

    Extraordinary Tales

    Na TV

    Esta adaptação do poema "O Corvo", protagonizada por Homer Simpson, que foi ao ar em um especial de Halloween dos "Simpsons"

    Simpsons

    Há dois anos, a série brasileira "Contos do Edgar" relembrou os mistérios do autor. Veja um episódio, clicando na imagem abaixo:

    Eduardo Knapp - 5.fev.2013/Folhapress
    O ator Marcos Andrade em cena da série "Contos do Edgar"
    O ator Marcos Andrade em cena da série "Contos do Edgar"

    Na música

    Lou Reed gravou um álbum, "The Raven", inteiramente inspirado na imaginação de Allan Poe:

    The Raven

    E leia, abaixo, o conto "O retrato ovalado" (1842) publicado em "Histórias Extraordinárias" (ed. Companhia da Letras, R$ 23):

    *

    O RETRATO OVALADO

    O castelo no qual meu criado estava decidido a entrar à viva força, não consentindo que eu, ferido como estava, tivesse que passar a noite debaixo da chuvarada, era um grande edifício senhorial e melancólico que durante muitos e muitos séculos fora grito de guerra nos montes Apeninos. Segundo nos disseram, tinha sido abandonado temporariamente por seus donos. Acomodamo-nos numa das salas menores, que era também a mais modestamente mobiliada. Estava situada num torreão um tanto afastado do corpo principal do castelo; seus móveis, seus adornos, ricos e luxuosos, pareciam maltratados pela ação do tempo e apenas conservavam poucos vestígios do antigo esplendor. Sobre as paredes, caíam tapeçarias e troféus heráldicos, bem como grande quantidade de quadros modernos encerrados em molduras de ouro e madeiras finíssimas. Devido talvez ao delírio que me produzia a alta febre, senti crescer dentro de mim um grande amor por aqueles quadros que, como prodigioso e estranho museu, tinha diante dos olhos. Mandei o criado fechar as pesadas portas e as altas janelas, pois era noite cerrada, e acender o candelabro de sete braços que encontrara sobre a mesa. Descerrei em seguida os cortinados de cetim e veludo que rodeavam o dossel de minha cama. Queria, assim, se por acaso não chegasse a conciliar o sono, distrair-me ao menos na contemplação dos quadros e na leitura de um livro de pergaminho que havia encontrado sobre a almofada, o qual parecia conter a descrição e a história de todas as obras de arte que se achavam encerradas naquele castelo.

    Passei quase toda a noite lendo. Naquele livro estava de fato a história dos quadros que me rodeavam. As horas transcorreram rapidamente e, sem que eu percebesse, chegou a meia-noite. A luz do candelabro me feria os olhos e, sem que meu criado o notasse, coloquei-o de tal modo que somente projetasse seus tênues raios sobre a superfície escrita do livro.

    Mas aquela troca de luz produziu um efeito inesperado. Os fachos das numerosas velas projetaram-se então sobre um quadro da alcova que uma das colunas do leito havia anteriormente envolto em sobra profunda. Era o retrato de uma jovem, já quase uma mulher. Dirigi ao quadro uma olhadela rápida e fechei os olhos. Não o compreendi bem a princípio. Mas, enquanto minhas pupilas permaneciam fechadas, analisei rapidamente a razão que me fizera cerrá-las assim. Era um movimento involuntário, para ganhar tempo e para assegurar-me de que meus olhos não me haviam enganado, para acalmar e preparar meu espírito para uma contemplação mais serena. Ao cabo de alguns momentos, olhei de novo para o quadro, dessa vez fixa e penetrantemente.

    Já não podia duvidar, ainda que o quisesse, de que agora o via com muita clareza. O primeiro esplendor da chama do candelabro sobre a tela tinha dissipado a confusão de meus sentidos e me chamara à realidade.

    O retrato era de uma jovem. Um busto; a cabeça e os ombros pintados nesse estilo que chamam, em linguagem técnica, estilo de "vinheta"; um tanto à maneira de Sully em suas cabeças prediletas. O seio, os braços e os cachos de cabelos radiantes fundiam-se imperceptivelmente na sombra que servia de fundo ao conjunto. A moldura era oval, dourada e trabalhada ao gosto moderno. Como obra de arte, não se podia encontrar nada de mais admirável do que a pintura em si. Mas pode ser que não fosse nem a execução da obra nem a beleza daquele semblante juvenil o que me impressionou tão súbita e fortemente. Menos ainda devia acreditar que minha imaginação, saindo de um sonho, tivesse tomado aquela mulher por uma pessoa viva. Vi de imediato que os pormenores do desenho, do estilo e do aspecto da moldura não me permitiram tal ilusão, ainda que momentânea, dissipando de pronto semelhante encantamento. Fazendo essas reflexões, permaneci estendido uma hora inteira, com os olhos cravados no retrato. Tinha adivinhado que o "encantamento" da pintura era uma expressão vital, absolutamente adequada à própria vida, que primeiro me tinha feito estremecer e, por fim, me subjugara, aterrorizado. Com um terror profundo e insopitável, coloquei de novo o candelabro em sua primitiva posição. Tendo ocultado assim à minha vista a causa dessa profunda agitação, procurei ansiosamente o livro que continha a análise do quadro e sua história. Fui em busca do número que designava o retrato oval e li o seguinte relato:

    "Era uma jovem de rara beleza e não menos amável do que alegre. Maldita foi a hora em que viu e amou o artista, casando-se com ele! Ele, apaixonado, estudioso, amava, mais do que sua esposa, a sua Arte; ela, uma jovem de rara beleza e não menos amável do que alegre, nada mais do que luz e sorrisos, ágil como a lebre solta no campo, amando e acariciando todas as coisas, odiando apenas a Arte que era sua rival, não temendo mais do que a palheta e os pincéis. Foi uma coisa terrível para ela ouvir o pintor falar do desejo de pintar sua esposa. Mas ela era obediente, e sentou-se com doçura durante longas semanas no sombrio e alto ateliê da torre, onde a luz penetrava por uma claraboia de cristal. Ele, porém, o pintor, punha seu destino e sua glória no retrato, que avançava em cores de hora para hora e de dia para dia. Era um homem apaixonado e estranho, que se perdia em sonhos, tanto que não queria ver que a luz que filtrava tão lugubremente naquela torre afastada extenuava a saúde e a almade sua mulher, que enfraquecia visivelmente aos olhos de todo o mundo, exceto aos dele. Contudo, ela sorria sempre, sem se queixar, porque via que o pintor sentia um prazer doido e ardente em sua tarefa, e trabalhava noite e dia para pintar aquela que amava tanto, mas que se tornava cada dia mais abatida e mais débil. E, na verdade, os que contemplavam o retrato falavam em voz baixa da extrema semelhança do original como de uma prodigiosa maravilha e como de uma prova não menor do talento do pintor do que de seu profundo amor por aquela a quem pintava tão milagrosamente bem. Todavia, mais tarde, quando a tarefa se aproximava de seu fim, já ninguém podia visitar a torre: o pintor tinha enlouquecido com o ardor de seu trabalho e não tirava os olhos da tela senão para ver a fisionomia da mulher. E não queria ver que as cores que gravava na tela, ele as ia tirando das faces daquela que estava sentada à sua frente. E quando, decorridas muitas semanas, já faltava muito pouco trabalho —nada mais do que uma pincelada sobre os lábios e uma sombra sobre os olhos—, o espírito da mulher palpitou como a chama próxima de extinguir-se palpita numa lâmpada; e então o pintor deu a pincelada sobre os lábios e a sombra sobre os olhos e, durante um momento, quedou em êxtase ante o trabalho realizado; um minuto depois, quando o olhava extasiado, um estremecimento de terror percorreu seu corpo, e ele começou a gritar com voz aguda e destemperada. 'É a vida, é a própria vida que aprisionei na tela!' E quando se voltou para contemplar a mulher, viu que ela estava morta."

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