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    De maneira crua, Svetlana Alexievich traduz dores de Chernobil

    RODOLFO LUCENA
    COLABORAÇÃO PARA A FOLHA

    24/10/2015 02h20

    Espíritos fracos devem guardar distância de "Voces de Chernóbil: Crónica del Futuro", versão em espanhol que a Folha leu do livro da bielorrussa vencedora do prêmio Nobel, Svetlana Alexievich. Seu relato do maior desastre nuclear em tempos de paz é um tapa na cara –não para derrubar o leitor, mas para mantê-lo alerta, de olhos abertos até o fim.

    Pela mão da escritora, as vítimas falam, revelam a desgraça de forma explícita, em tom que se torna mais gritante por sua singeleza.

    "Todo seu corpo era uma chaga sanguinolenta. Quando levantava a mão, o osso se movia, dançava, havia se separado da carne. Pedacinhos de fígado e pulmão lhe saíam pela boca. Ele se afogava nas suas próprias vísceras", conta a viúva de um bombeiro que atuou na luta contra o incêndio na usina nuclear.

    Sergey Dolzhenko/Efe
    ORG XMIT: 242601_1.tif KIV08 CHERNOBIL (UCRANIA) 10/04/06. Caballos pastan cerca de la central nuclear de Chernúbil, ayer miércoles 19 de abril. Los caballos salvajes de Przhevalskiy fueron trasladados a la zona de exclusiún establecida después del accidente nuclear. Los ucranianos celebran el prúximo 26 de abril el vigésimo aniversario del desastre de Chernúbil. EFE/Sergey Dolzhenko
    Cavalos selvagens pastam ao lado da usina de Chernobil, 20 anos após desastre de 1986

    O relato de Liudmila Ignatenko é um dos mais dramáticos: "Às vezes me parece ouvir sua voz... Ouvi-lo vivo... Nem as fotografias me provocam tanta reação quanto sua voz. Mas ele nunca me chama... Nem em sonhos... Sou eu quem o chama...".

    'SOU A RADIAÇÃO'

    Antes de dar voz aos sofredores, Alexievich apresenta trechos de notícias e estudos para contextualizar as consequências da explosão ocorrida à 1h23m58s de 26 de abril de 1986 no reator número 4 da usina de Chernobil.

    Mortes, envenenamento do solo, contaminação do ar –em tudo os números são grandiloquentes. Antes da explosão, havia 82 casos de câncer por 100 mil habitantes de Belarus; depois, a média subiu para 6.000, afirma o livro.

    A angústia frente à monumentalidade da tragédia afeta também a autora, que entrevista a si mesma e constata que sua vida e ela própria se tornaram parte dos acontecimentos.

    "O nome de meu país, um pequeno território na Europa do qual o mundo quase nada sabia, se converteu no diabólico laboratório de Chernobil, e nós, bielorrussos, nos transformamos no povo de Chernobil", diz. Ela foi ouvir seus compatriotas para captar "os sentimentos do cotidiano, os pensamentos e as palavras, a vida banal de gente comum".

    Em cerca de dez anos, colheu centenas de depoimentos. Hoje moradora de Minsk, a mais de 400 km de Chernobil, visitou os locais atingidos, falou com gente que vivia em áreas proibidas. Deixou que contassem sua história no livro que levou quase 20 anos para produzir.

    Assim, sua obra é a tessitura de memórias, opiniões, choros e denúncias de todo o povo, sem intervenção da autora, exceto pela edição e organização dos relatos. Mal comparando, "Voces..." lembra documentários em linguagem direta, em que não se ouve a pergunta nem se vê o entrevistador, apenas a imagem e a voz do personagem.

    Há quem procure culpados –a União Soviética, a incompetência etc.–, mas o livro transcende isso. Ele é, de fato, uma enorme –às vezes, chata e recorrente– discussão sobre a vida e a morte, sobre o que fizemos com nosso planeta, sobre para onde caminha a humanidade.

    Falam meninos e meninas. "Tenho um irmão pequeno. Ele gosta de brincar de Chernobil. Se veste de espantalho e sai a gritar: 'Sou a radiação! Sou a radiação!'", conta um.

    Ele não entende o que aconteceu. Muitos de nós ainda não entendem.

    VOCES DE CHERNÓBIL: CRÓNICA DEL FUTURO
    AUTORA Svetlana Alexievich
    TRADUTOR Ricardo San Vicente (para espanhol)
    EDITORA Debolsillo (edição digital para Kindle)
    QUANTO 7,59 euros (R$ 33,39) na Amazon da Espanha

    Edição impressa

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