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    Condenação de produtora de 'tapinha não dói' acirra debate sobre censura

    ANGELA BOLDRINI
    DE SÃO PAULO

    02/11/2015 02h00

    "A ideia veio da minha filha. Quando ela era pequena, eu dei um tapinha nela, de brincadeira. Ela disse: 'pai, um tapinha não dói!'", conta MC Naldinho, 38, à Folha.

    Foi dessa frase da menina, diz o carioca, que nasceu "Tapinha", hit do funk no início do século. Lançada em 2001, a música do refrão "Dói, um tapinha não dói" alçou Naldinho e MC Bela, sua então companheira, ao estrelato, foi tocada por Caetano Veloso e Ivete Sangalo e causou uma polêmica tão grande quanto seu sucesso.

    Em 2002, a produtora Furacão 2000 foi alvo de uma ação civil pública movida pelo Ministério Público Federal a pedido da ONG Themis, movimento de advogadas feministas do Rio Grande do Sul.

    Condenada a uma multa de R$ 500 mil, a produtora recorreu e conseguiu reverter a sentença, mas coube recurso e, em outubro deste ano, o Tribunal Regional Federal da 4ª Região decidiu pela condenação.

    Ricardo Borges/Folhapress
    MC Naldinho, autor do funk 'Tapinha', em Bangu, no Rio de Janeiro
    MC Naldinho, autor do funk 'Tapinha', em Bangu, no Rio de Janeiro

    A alegação é que versos como "se te bota maluquinha, um tapinha eu vou te dar" e "vou visando tua bundinha, maluquinho pra apertar" incitam a violência contra a mulher. Procurada, a Furacão afirmou apenas que deve recorrer –o caso segue agora para Brasília.

    Para Naldinho, a música não é violenta nem tampouco sexual. Hoje evangélico, ele canta trechos do hit em cultos.

    A mesma ação pedia ainda condenação da União (sob alegação de o que o Estado deveria ser mais vigilante em relação a violação de direitos) e da Sony Music pela música "Tapa na Cara", do Pagod'Art, também acusado de incitar a violência contra a mulher.

    Ambas foram absolvidas em primeira instância.

    Isabela Carnevale/TV Globo
    A dupla MC Bela e MC Naldinho durante apresentação no programa 'Altas Horas', em 2001
    A dupla MC Bela e MC Naldinho durante apresentação no programa 'Altas Horas', em 2001

    "O juiz entendeu que como a mulher da música pedia para apanhar, não seria atentatória", afirma o desembargador Luís Alberto Aurvalle, relator do processo.

    Não é a primeira vez que a Sony sofre uma ação civil pública do tipo.

    Em 2011, foi condenada a pagar R$ 1,2 milhão de indenização ao fundo federal de Danos Morais Difusos por causa de "Veja os Cabelos Dela", de 1997, interpretada pelo atual deputado federal Tiririca (PR-SP) e acusada de racismo. A música tem versos como "essa nega fede, fede de lascar".

    CARÁTER PEDAGÓGICO

    Casos como esses levantam debates acalorados sobre os limites da interferência do Judiciário na cultura.

    Para Aurvalle, a decisão contra a Furacão 2000 tem um caráter pedagógico. "As músicas passam uma ideia de que bater em mulher é normal", diz. "Vende-se esse conceito de que não se pode coibir qualquer tipo de manifestação artística, e não é bem assim."

    O presidente da OAB de São Paulo, Marcos da Costa, diz que as decisões têm de ser muito bem fundamentadas. "Ou correm o risco de serem censura do que não gostamos."

    Isso não significa que casos extremos não devam ser tratados no Judiciário, diz.

    Em 2003, por exemplo, o Supremo manteve a sentença de dois anos de reclusão para o gaúcho Siegfried Ellwanger Castan, autor de "Holocausto Judeu ou Alemão?", que nega o genocídio nazista. As edições do livro foram proibidas.

    "Mas isso deve ser a exceção da exceção", diz Costa. "A regra deve ser a liberdade de manifestação".

    Para ele, mesmo casos em que não há retirada de circulação do produto podem ser considerados censura caso haja uma inviabilização financeira. "Não é a censura tradicional, mas se caracteriza assim se é colocada uma dificuldade financeira que impede a execução da música, por exemplo."

    O desembargador gaúcho discorda. Segundo ele, ainda que não caiba ao Judiciário exercer o controle prévio sobre manifestações culturais, após a colocação do produto em circulação "ele pode e deve sofrer crivo da Justiça".

    "Os direitos fundamentais não são absolutos, questionar é viável dentro do nosso sistema constitucional. Não é censura e não atenta contra a democracia", conclui.

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