• Ilustrada

    Friday, 03-May-2024 14:28:56 -03

    ANÁLISE

    Diante da verborragia, Raduan Nassar educa pelo rigor do silêncio

    PAULO ROBERTO PIRES
    ESPECIAL PARA A FOLHA

    27/11/2015 02h05

    Os 80 anos de Raduan Nassar pairam incomodamente sobre a literatura brasileira. É que um dos melhores e mais importantes prosadores da língua em todos os tempos segue ignorando para valer toda uma liturgia que cerca a literatura e que, no fundo, é alheia a ela.

    À verborragia, ele ofereceu brevidade: um romance curto, uma novela, cinco contos. À algaravia, contrapôs o silêncio: nada de entrevista, nada de festival, de conversa fiada. Avareza e soberba não explicam sua decisão radical: dele, temos o escrito. E eu, viciado na falação, já ia escrevendo: "e é só". Como se precisasse mais.

    Assim como escapou à tentação da tagarelice, Raduan é irredutível ao figurino do "escritor recluso" envergado por Dalton Trevisan e Rubem Fonseca. Eles, que neste ano chegaram aos 90, mantêm com jornalistas e leitores um esconde-esconde que, no fim das contas, tensiona o arco da curiosidade. Aqui e ali há fotos de paparazzi, intrigas provincianas e, concretamente, novos livros.

    Moacyr Lopes Jr./Folhapress.
    SÃO PAULO, SP, BRASIL, 17-05-2015: O escritor Raduan Nassar, autor de "Um Copo de Cólera", que será transformado em filme, durante entrevista em sua casa, no bairro de Perdizes, em São Paulo (SP). (Foto: Moacyr Lopes Jr./Folhapress. Negativo: SP 080875-1995)
    Raduan Nassar em sua casa em São Paulo, em foto de 1985

    De Raduan não se espera mais livro. Sabe-se que trocou a escrita pela administração de uma fazenda. Que acolheu com entusiasmo a "Lavoura Arcaica" de Luiz Fernando Carvalho. Que há três anos apareceu na Balada Literária dedicada a ele e numa reportagem sobre a decisão de doar ao Estado sua propriedade; e, em 2014, num vídeo em que repudiava Aécio e apoiava Dilma. E, aí sim: é só.

    Em 1989, jovem e chapado por "Lavoura Arcaica", fui a uma bisonha feira de livros que, num shopping de decoração do Rio, anunciava sua presença. Ele de fato estava lá, docemente constrangido, esgrimindo com delicadeza evasivas sobre a criação literária e perplexo diante de uma leitora que, de pé, declarou-se uma noiva abandonada no altar por sua decisão de não mais escrever. Pedi um autógrafo e ele perguntou: "Posso só assinar o nome?"

    Oito anos depois, coube-me mediar o imediável: sem responder perguntas, Raduan leria trechos de "Benjamin" e, Chico Buarque, os contos "Hoje de Madrugada" e "O Ventre Seco". Lembrei a ele a história da noiva. Deu risada e um autógrafo, já com meu nome e "o abraço do Raduan".

    Em 1998, encontrei-o no Salão do Livro de Paris, onde fez uma rápida aparição. A princípio, nem cheguei perto. Mas ele veio, caloroso, lembrando da leitura com Chico e de seu pânico com o público. Dias depois, nos esbarramos num café vagabundo de Montparnasse e ficamos de papo furado.

    RESISTÊNCIA AO FÁCIL

    Jamais falamos sobre literatura. Eu, na verdade, entraria em pânico se ele topasse uma entrevista, pois não saberia mesmo o que perguntar diante do que li, reli e ainda releio. E, nestes encontros tão diferentes, em épocas tão diversas, confirmava-se para mim, inequivocamente, a firmeza de seu silêncio literário.

    Escrevendo sobre Mallarmé, Paul Valéry dizia que a grandeza de um escritor deveria poder ser medida por suas recusas, pelo rigor delas. "É nesse ponto", escreve ele, "que a literatura atinge o domínio da ética: é nesta ordem de coisas que se pode introduzir o conflito entre o natural e o esforço; que ela obtém seus heróis e seus mártires da resistência ao fácil".

    Parabéns, Raduan. Por tudo.

    Edição impressa

    Fale com a Redação - leitor@grupofolha.com.br

    Problemas no aplicativo? - novasplataformas@grupofolha.com.br

    Publicidade

    Folha de S.Paulo 2024