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    Crítica

    Vanessa Barbara cria analogia entre divórcio e Guerra Fria

    JULIANA CUNHA
    EDITORA-ASSISTENTE DA "ILUSTRADA"

    28/11/2015 02h37

    O casal Tito e Lia vive em uma bolha de jogos de cartas, filmes e piadas internas até que um deslize do marido arruína as estruturas do relacionamento. Tito é um programador e ex-militante comunista. Lia é uma historiadora caseira que vive em pijamas de flanela enquanto trabalha em sua dissertação de mestrado, sobre a Guerra Fria.

    Os dois mantêm um casamento perfeito, na visão da narradora: estabelecem um vocabulário próprio, vivem grudados, o mundo exterior a eles pouco é mencionado. Amigos, mal aparecem, exceto Josef —provável alusão a Stalin—, colega de infância de Lia que é adotado por Tito —provável alusão a Josip Broz Tito.

    A família faz mera figuração e o zelador do prédio surge como um enviado especial que em ocasiões esparsas penetra o apartamento do casal para combater invasores, como insetos voadores.

    Alexandre Rezende/Folhapress
    *** EXCLUSIVO REVISTA SAO PAULO *** SAO PAULO, SP, BRASIL, 16-04-2013, 20:00h. Retrato de Vanessa Barbara, colunista da Revista São Paulo em seu bairro, Mandaqui, na Zona Norte de São Paulo.(Alexandre Rezende/Folhapress REVISTA SAO PAULO)
    A escritora e jornalista no Mandaqui, bairro onde foi criada

    Nesse terceiro romance (e sexto livro) da jornalista e escritora Vanessa Barbara, somos inseridos na dinâmica de um relacionamento baseado em relações fraternais um tanto infantilizadas e num teatrinho de casamento tradicional.

    O casal (mais especificamente, Lia) trabalha no sentido de criar um mundo só deles. Prezam sua linguagem inacessível aos demais, as desculpas para evitar os amigos, os pijamas, a mentira de que passariam dez dias na praia quando na verdade ficariam encastelados em casa, os valores, objetos e palavras levemente datados.

    Aqui e ali, surgem indícios do conservadorismo de Lia: a ideia de que o marido deveria "honrá-la"; a piada sobre o contrato de caráter irrevogável assinado entre Tito e seus pais, que inclui pagamento em camelos pela noiva e promessa de que sustentará o Pacote (Lia), além de cuidar dela; o comentário sobre furar os olhos do ex-namorado com um abridor de cartas.

    Tito, por sua vez, é um personagem volúvel que parece embarcar no projeto de vida de Lia como quem embarca num projeto de férias.

    A resistência aos invasores surge a todo momento. Uma simples mariposa entrando pela janela é motivo o bastante para Tito querer emparedar o cômodo e nunca mais frequentá-lo. Cabe a Lia enfrentar os infiltrados: é ela quem mata os bichos menores, delegando os maiores ao zelador. É ela quem sustenta o isolamento do bloco. É ela quem faz a manutenção da casa e usa aliança sozinha.

    Todo dia, quando ouve o barulho da chave, Lia corre para abraçar Tito como quem pretende resgatá-lo da rua. O barulho da chave é uma sirene que marca o retorno ao lar. A chave é ainda o símbolo do lar que Tito leva consigo, uma vez que aliança ele não usa, só para fazer brincadeiras em que acena para dar tchau e a joia voa de seu dedo.

    O fim do casamento não é spoiler —sabemos de antemão que durará cinco anos "três gatos e duas tartarugas"— e tem tudo a ver com chaves.

    Um dia, no trabalho, Tito digita um código errado e apaga as senhas de todos os clientes de uma loja virtual. Desesperado —ele deve ser demitido, arruinar sua reputação de programador— resolve aplicar um truque que faz com que o sistema redefina como nova senha a primeira coisa que o usuário digitar no campo especificado. Funciona, o emprego é preservado, mas a partir daí surge um racha no casal. Lia se espanta com o deslize ético do marido.

    O casamento então replica o golpe de Tito com as senhas: há uma aparência de que nada aconteceu quando na verdade tudo foi redefinido.

    A estrutura do romance é composta por e-mails trocados, conversas na mesa do café, pequenas reflexões de Lia e, sobretudo, por um diário de filmes assistidos onde os dois —mas desconfio que desde o começo seja só Lia— fazem uma sinopse aloprada do filme do dia e narram pequenos episódios domésticos ocorridos durante sua exibição.

    O diário funciona como um relatório de a quantas anda o casamento. A partir do meio do romance, tudo desanda quando Tito começa a traçar rotas de fuga daquele mundo a dois e consequentemente desaparece do diário. Os filmes velhos dão lugar ao videogame, a cerveja com amigos outrora irrelevantes.

    Um dos pontos interessantes do livro é sua falta de descrições. Passamos a história inteira enfurnados num apartamento com um homem e uma mulher, mas chegamos à última página incapazes de descrever como eles são fisicamente, ou como é o apartamento. Sabemos que Lia gosta de calças de moletom e das melhorias feitas na casa sem nunca sabermos quantos anos ela tem, ou quantos quartos tem o imóvel.

    Isso cria alguns efeitos curiosos. Quando Tito começa a passar muito tempo no computador, por exemplo, é como se aquele cômodo —o quarto do computador— tivesse surgido do nada, desemparado-se do nada. O leitor não sabia que ele estava ali, e talvez a narradora também mal o notasse.

    Se no enredo é Tito quem escapa, narrativamente, é Lia quem se vira para fora da relação: é ela que se volta a um leitor para contar a história de um casamento em que permaneceu trancada para dentro, sozinha.

    OPERAÇÃO IMPENSÁVEL
    AUTORA Vanessa Barbara
    EDITORA Intrínseca
    QUANTO R$ 40 (224 págs.)

    Edição impressa

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