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    Em romance recém-lançado no Brasil, Héctor Abad trata de segregação social

    SYLVIA COLOMBO
    DE SÃO PAULO

    05/12/2015 02h20

    Em "A Ausência que Seremos", o colombiano Hector Abad Faciolince, 57, retratou o drama da violência em seu país no auge dos cartéis da droga expondo sua própia história. Em chave memorialística, o autor reconstruiu, então, a própria infância até o dia em que o pai, um famoso médico e defensor dos direitos humanos, foi executado por paramilitares, em 1987.

    O livro deu projeção internacional a Faciolince, que veio mostra-lo também na Flip (Festa Literária Internacional de Paraty) de 2011.

    Agora, chega ao Brasil a obra que antecedeu esse grande êxito literário, "Angosta", de 2003, na qual Faciolince também se inspira na violência nos anos 1980 para desenhar uma cidade imaginária absurda em que a população é dividida em castas e seções, com grande vigilância.

    Daniela Abad/Divulgação
    O escritor Hector Abad Faciolince. Foto: Daniela Abad/ Divulgacao ***DIREITOS RESERVADOS. NÃO PUBLICAR SEM AUTORIZAÇÃO DO DETENTOR DOS DIREITOS AUTORAIS E DE IMAGEM***
    O escritor Héctor Abad, 57, autor do romance "Angosta"

    Leia, abaixo, a entrevista.

    Folha - O livro foi escrito há mais de 10 anos. Que coisas em Medellín estão mais parecidas ao que conta na obra?

    Hector Abad Faciolince - Quando eu imaginei "Angosta", Medellín estava se dissolvendo e os políticos propunham coisas absolutamente loucas: bombardear as favelas, construir muros que dividissem partes "sãs" de partes "doentes" da cidade ou pedir documentos para irmos de um lugar para outro.

    Havia bombas, terrorismo político e terrorismo dos narcos. Em apenas um ano mataram, em Medellín, mil policiais e se pagavam mil dólares por cada policial morto. Muita gente vivia na velha lixeira da cidade.

    Quando um político visionário, Sergio Fajardo, leu meu livro, me disse que, se chegasse ao poder, transformaria o bairro da lixeira, que se chama Moravia. Fajardo chegou ao poder, e agora em Moravia há um museu de ciências, recuperou-se o Jardim Botânico, e se construiu um centro cultural. E as pessoas que viviam na lixeira foram transportadas para moradias dignas.

    A Angosta imaginada era o que Medellín poderia se transformar se os mesmos políticos que colocaram tanques do Exército e fuzis nas favelas continuassem, fazendo desaparecer centenas de pessoas.

    Isso foi em 2002, o romance saiu em 2003. Fajardo chegou ao poder logo depois. Medellín não se transformou em Angosta. Mas essa cidade espantosa ainda pode se tornar possível.

    O político que colocou os tanques nas favelas, um homem que teve relações comerciais com a máfia do narcotráfico, acaba de ganhar de novo as eleições na região de Antioquia, da qual Medellín é a capital. É um regresso ao passado. A luta da luz contra as trevas, para colocar nos termos mais maniqueístas e esquemáticos possíveis, continua.

    Angosta, a cidade dividida e militarizada, pode voltar a ameaçar.

    Angosta é apenas Medellín?

    Não. Angosta é também Rio e São Paulo. É a fronteira entre Israel e os palestinos, é a fronteira dos EUA com o México, é a periferia de Paris, são os refugiados que chegam na Hungria.

    Angosta quer ser uma cidade global, um resumo do mundo, onde uma casta tem em suas mãos quase todos os recursos.

    Vivi muito tempo nos EUA e na Europa e, ao voltar à América Latina, vejo que temos aqui do Primeiro ao Terceiro Mundo.

    Também penso que nossas cidades, nossos microcosmos, são bons resumos do mundo. Nas cidades da América Latina, pode-se passar da Europa à África e à Índia em menos de 50km de viagem.

    Folha - Em que sentido o mundo que o romance propõe se parece com o discurso político de alguém como Donald Trump, que propôs um muro na fronteira dos EUA com o México?

    Em muito. Os políticos reacionários do mundo querem criar outra vez várias Áfricas do Sul do tempo do "apartheid". Agora os republicanos chegaram a dizer que seria necessário proibir os muçulmanos nos EUA: um país que se fundou sobre a base da liberdade religiosa.

    É preciso viver em alerta: os políticos desse mundo enlouquecem muito facilmente e enlouquecem também os eleitores. A fantasia de Philip Roth, de um governo nazista nos EUA, é verossímil.

    Em todos os nossos países temos de viver em alerta. As forças da "segurança, da ordem, da pátria, da família e da raça" estão sempre aí, esperando para ver como roubar espaço ao liberalismo, à democracia, à busca da igualdade e da liberdade.

    Folha - Você leu "Submissão", de Michel Houellebecq? A proposta é parecida, de imaginar um futuro catastrófico, mas plausível, a partir da realidade atual. Concorda?

    Sim, em parte. Mas em "Submissão", a fantasia se baseia na chegada ao poder de uma religiosa muçulmana que rompe com a tradição laica e liberal da França. Minha fantasia de ficção científica fala de uma casta supostamente liberal que, em nome da liberdade, decreta una política de separação por raças, classes sociais, e poderia ser também por religião.

    Em Angosta há até uma prisão que se chama Guantánamo.

    Folha - Não é por acaso que entre os personagens principais estejam escritores, livreiros. A ideia é chamar a atenção para a importância da literatura em tempos difíceis?

    A literatura, o jornalismo, a ficção e a não-ficção têm o dever de mostrar as coisas como são: abrir nossos olhos, fazer com que imaginemos as possibilidades atrozes do mundo em que vivemos. As pessoas têm de estar prevenidas contra os assédios do fanatismo e da falta de razão.

    O mundo tem progresso porque houve uma "república das letras" que tem sido, quase sempre, melhor do que as repúblicas reais.

    Se deixamos tudo na mão dos políticos, são capazes de convencer os cidadãos de qualquer barbaridade por meio da propaganda.

    A escrita, o cinema, a palavra, a reflexão nos ajudam a abrir os olhos e a não engolir de uma vez as barbaridades que são ditas no dia-a-dia nas tribunas políticas. Da esquerda à direita.

    Acabo de ler que Mao Tse-tung aconselhava que não se lessem muitos livros. Para ele, devia-se ler poucos livros e só sobre marxismo. Que diferença há entre isso e os muçulmanos que acreditam que só existe o Corão? Ou o cristianismo em sua luta contra os romances que "pervertiam" os jovens?

    A nenhuma autoridade agrada a leitura vasta e variada, porque a leitura é liberadora.

    A de ficção, o jornalismo, a divulgação científica, a ciência política, a filosofia.

    Sim, não é casual que os personagens de Angosta tenham uma livraria. Nem é casual que a livraria termine como termina.

    Folha - A violência tem sido central na literatura colombiana. Como acha que um possível acordo do governo com as Farc (Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia) vai impactar nas artes?

    A Colômbia é uma anomalia na América Latina e em todo o hemisfério ocidental: o único país com uma guerra civil política, ainda que agora de baixa qualidade. Isso precisa acabar, ainda que com uma dose de impunidade alta, por meio de uma Justiça transitória. É preciso virar essa página. Mas é muito difícil negociar com um chavismo armado e ressentido, e isso são as Farc. A coisa ainda pode perder-se no último momento. Tomara que se chegue a um acordo e os ex-terroristas queiram fazer política normal, com a voz e as palavras, sem fuzis. Seria algo extraordinário para diminuir a violência, e sobretudo para o ânimo, para a alma colombiana. Começaríamos, por fim, a valorizar um pouco mais a vida.

    Teríamos também um Exército menos rico, menos violento e menos arbitrário. Seria maravilhoso por todos os lados.

    Tomara que seja possível, e então os escritores poderemos escrever histórias que não tenham nada a ver com o conflito armado.

    ANGOSTA - A CIDADE DO FUTURO
    AUTOR Héctor Abad
    TRADUÇÃO Rubia Prates Goldoni
    EDITORA Companhia das Letras
    QUANTO R$ 54,90 (376 págs.)

    Edição impressa

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