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    CRÍTICA

    Nobel chinês Mo Yan cria trama picaresca com tempero poético

    ALCIR PÉCORA
    ESPECIAL PARA A FOLHA

    05/12/2015 02h13

    Uma maneira de fazer a apresentação de "As Rãs" (2009), de Mo Yan, autor chinês ganhador do Prêmio Nobel de Literatura de 2012, é dizer que trata das mudanças operadas na China desde os anos 50, passando pelo período da Grande Fome e da Revolução Cultural, até chegar aos tempos atuais de capitalismo de Estado. Tudo visto pelos olhos de um garoto da zona rural do nordeste de Gaomi, que depois de desventuras escolares e militares, torna-se um escritor importante —dados que condizem com a biografia do próprio Mo Yan. Deve-se acrescentar que o fio condutor da narrativa são as façanhas da tia do narrador, a obstetra responsável pelo controle de natalidade na região.

    O principal defeito dessa apresentação é omitir o quanto a narrativa (ou, se quiserem, a China) tem de estranha para nós. O que fica nítido já pelo gênero dela, que postula o épico, para lançar-se ao cômico e, mais ainda, ao caricato. Tem qualquer coisa da novela picaresca, mas temperada com um gosto poético, descritivo e melodramático que lhe são alheios.

    AFP
    O escritor chinês Mo Yan, o ganhador do Prêmio Nobel de Literatura de 2012, durante evento em Haikou, província de Hainan, sul da China. *** This picture taken on March 25, 2012, shows Chinese writer Mo Yan, the 2012 Nobel Literature Prize winner, attending a novel competition in Haikou, in south China's Hainan province. The Swedish Academy announced on October 11, 2012 that Chinese author Mo Yan won the Nobel Literature Prize "with hallucinatory realism merges folk tales, history and the contemporary". CHINA OUT AFP PHOTO
    O escritor chinês Mo Yan, o ganhador do Prêmio Nobel de Literatura de 2012, durante evento em Haikou, sul da China

    Alguns pensaram poder atribuir-lhe traços do "realismo mágico" latino-americano e não poucos compararam Mo Yan a García Márques, o que, em parte, deriva de uma das piadas que lança no livro. Mas Mo Yan não tem fins políticos, nem adere a causas coletivas e populares. As suas personagens desconhecem gestos soberanos.

    O seu mundo está ao pé das plantações e do exército miúdo, de modo que ninguém tem opiniões sobre o que quer que esteja além de comer e beber tudo o que possa, conseguir um cônjuge o menos ruim possível, ter ao menos um filho homem para prolongar a linhagem, e, enfim, obter algum conforto na vida, aproveitando qualquer oportunidade surgida para trabalhar menos e ter direito a comer comida comercial, ou seja, pela qual possa pagar, sem ter de plantar ele mesmo.

    Para fazer esta resenha tentando respeitar a estranheza do objeto, conversei com duas estudantes chinesas gentilíssimas que fazem doutorado na Unicamp, Fan Xing e Ma Lin. Repasso-lhes, aqui, uma forma alternativa de apresentação do livro que simplifica e deturpa o que pacientemente me explicaram, utilizando, como exemplo exemplar, o ideograma que dá título à novela, a saber: "蛙".

    Como se sabe, a transcrição dele, "wa", admite diferentes significados e tonalidades. Assim, a palavra "rã" em chinês é 蛙 (wā, com primeira tonalidade); a palavra "bebê" é 娃 (wá, com a segunda tonalidade), enquanto o choro de bebê e o canto das rãs são 哇 (wā, primeira tonalidade), que explora obviamente um som onomatopaico, que talvez pudesse ser traduzido em "português" por "buá"; além disso, a deusa criadora dos homens é 女娲 (Nǚ wā, onde o último caráter, embora tendo forma diversa, tem pronúncia idêntica ao "wa" de primeira tonalidade).

    Ou seja, em "wa" estão embutidas ao menos quatro palavras diferentes e é a progressiva articulação delas que dita o andamento da novela. Rãs botam ovos, girinos são espermatozoides, uma multidão de rãs e girinos atropela-se no pântano pegajoso regido pela procriação. Não olvidar que "Girino" é o pseudônimo do narrador que inventa a história toda.

    AS RÃS
    AUTOR Mo Yan
    TRADUÇÃO Amilton Reis
    EDITORA Companhia das Letras
    QUANTO R$ 52,90 (496 págs.) e R$ 36,90 (e-book)

    ALCIR PÉCORA é professor de teoria literária da Unicamp.

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