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    análise

    Em grande papel no cinema, Marília Pêra destruiu sacristia com fúria

    INÁCIO ARAUJO
    CRÍTICO DA FOLHA

    05/12/2015 14h00

    De Marília Pêra no cinema convém reter, antes de mais nada, sua melhor interpretação: a fabulosa Ana Lara de "O Viajante" (1999), de Paulo César Saraceni. Ali, Marília renuncia a esse hábito frequente nas primeiras atrizes brasileiras de sobrepor a própria personalidade à do personagem, fazendo a crítica do personagem no momento mesmo em que a interpreta.

    Não que ela sempre fizesse isso, talvez só quando tivesse dúvidas a respeito do seu papel ou mesmo da direção. Um outro momento em que Marília chega à completa transparência –sim, a não raro desejável transparência clássica– é em "Central do Brasil" (1998), de Walter Salles. Mas ali seu papel era secundário: o filme era de Fernanda Montenegro.

    Em "O Viajante", no entanto, sua entrega é completa a Ana Lara, a viúva de uma cidadezinha mineira que se apaixona pelo viajante Rafael, mas enfrenta a concorrência de uma jovem.

    Sem conseguir o desejado amor do homem, Ana Lara revolta-se contra Deus e destrói uma sacristia num acesso de fúria. É um dos melhores momentos de uma atriz do qual me lembro no cinema brasileiro –e não só.

    Consta que ela, católica, num primeiro momento teria se recusado a fazer a cena. Seria mesmo? Pois ela o faz com tal ímpeto, como possuída pelo demônio: a frustração que vivia, intensa, deixa-se extravasar naquela sequência de gestos destrutivos.

    Estou falando aqui de uma produção tão excepcional quanto pouco reconhecida, talvez o melhor trabalho feito no cinema brasileiro desde a chamada Retomada, nos anos 1990.

    Mas são vários os momentos a destacar em suas aparições no cinema, quase sempre quando o personagem não era chamado a fazer a crítica de si mesmo –como em "Pixote: A Lei do Mais Fraco" (1981), de Hector Babenco.

    Só me lembro de Marília em comédias em "Bar Esperança" (1983), no qual, a exemplo do filme inteiro de Hugo Carvana, a simpatia da personagem é capaz de provocar empatia no espectador. Mas ali é como se não necessitasse de todo o seu talento para desenvolver o trabalho.

    O seu melhor, o seu máximo, em uma carreira cheia de prêmios, pode ser encontrado na tragédia de Ana Lara, que pouco foi vista e pouco reconhecimento recebeu.

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