• Ilustrada

    Monday, 06-May-2024 11:01:26 -03

    Vídeos raros de dois dos maiores violonistas brasileiros são encontrados

    JULIANA CUNHA
    EDITORA-ASSISTENTE DA "ILUSTRADA"

    18/12/2015 02h00

    Dois vídeos que juntos somam menos de dez minutos e não chegavam a nove mil visualizações até o fechamento desta edição conseguiram abalar a patota do violão clássico.

    O Duo Abreu, formado pelos irmãos Sérgio e Eduardo na década de 1960, é uma dupla lendária em história e qualidade. Eles se apresentaram em quatro continentes, encerraram a carreira antes dos 30 anos de idade e desapareceram de cena deixando três LPs (nunca foram lançados em CD), algumas gravações esparsas e um vídeo, exibido pelo Fantástico em 1974, no auge do sucesso.

    Isso até que um fã cutucasse o Meloclassic —um selo independente alemão especializado em gravações raras— e eles descobrissem duas raridades: dois vídeos de 1969 e 1974 em que os irmãos tocam a "Tonadilla", do espanhol Joaquin Rodrigo, e as "Três peças do segundo livro para cravo", do compositor francês Jean-Philippe Rameau, adaptada por Sérgio para ser tocada por dois violões.

    Os vídeos foram disponibilizados na internet no começo de dezembro. Desde então, são o único assunto dos fóruns de violão clássico.

    "Se achassem o Santo Graal eu não ficaria tão espantado", diz Ricardo Dias, luthier e biógrafo do irmão mais velho, Sérgio Abreu, que chegou a seguir uma breve carreira solo após o término da dupla, em 1975. Hoje é considerado o maior luthier do país e fabrica cerca de dez instrumentos por ano para duplas como o Duo Siqueira Lima e o Brasil Guitar Duo.

    "Sérgio conseguiu transmitir o mesmo perfeccionismo que tinha como músico para a fabricação de instrumentos, seu ouvido e técnica são um espanto", conta Dias.

    O irmão mais novo, Eduardo, é um mistério ainda maior: aos 26 anos, cansou de ser músico e foi estudar engenharia eletrônica na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Atualmente, trabalha com algo relacionado a tecnologia, na Pensilvânia, nos Estados Unidos, estuda música apenas por lazer e poucos sabem de seu paradeiro —os que sabem, preferem não falar.

    UM VELÁSQUEZ NO PORÃO

    "Antes do aparecimento desses vídeos, muitos não acreditavam nos relatos daqueles que como eu, presenciaram o Duo Abreu ao vivo", conta Edelton Gloeden, professor de música da Universidade de São Paulo (USP).

    "Tive o privilégio de ver quatro apresentações deles e algumas outras de Sérgio Abreu como solista e com músicos do calibre do flautista Norton Morozowic e da soprano Maria Lucia Godoy. Desde então, coloco o Duo Abreu entre as referências máximas, não somente para violonistas", diz Gloeden.

    "A maneira de tocar deles era tecnicamente imaculada e musicalmente original, uma coisa ao mesmo tempo exuberante e muito disciplinada. Isso ainda é raro no violão. Nessa época, era domínio exclusivo deles", conta o violonista Fabio Zanon.

    Assim como boa parte dos violonistas clássicos, Zanon considera que o Duo Abreu tenha sido o melhor do mundo. "Na época deles, só tinha uma meia dúzia de violonistas com esse nível musical, todos eles famosíssimos e nenhum com esse apuro técnico", diz.

    Para ele, o surgimento dos vídeos é comparável ao de "uma grande tela de Velásquez escondida num sótão, um filme de Kubrick ou Orson Welles esquecido num baú". "É um dos maiores momentos da arte musical brasileira, sem sombra de dúvida", afirma.

    O jeito impassível com que eles tocavam destoava do estilo de outros músicos nacionais. "A atitude deles não tem nada que remeta à maneira do violão brasileiro. Eles eram os concertistas mais puramente clássicos que se poderia imaginar. Esse jeito completamente sereno de tocar, sem mis-en-scène nenhuma, acabava por criar um fascínio próprio" diz.

    Assistindo aos vídeos, nota-se que os músicos estão colocando muita energia nas cordas, sentando a mão no violão, mas o esforço não se deixa trair: os movimentos parecem sutis, o som nunca é bruto ou estrangulado.

    "Há uma pureza e variedade na articulação, e na sincronia dessa articulação entre eles, que exige uma sequência de movimentos muito precisos e detalhados. Eles fazem isso com uma medida exata, em que as notas têm a duração e intensidade muito controladas, mas parece que tudo flui num movimento simples, contínuo e espontâneo", ressalta Zanon.

    Duo Abreu toca a "Tonadilla", do espanhol Joaquin Rodrigo

    BUSCA EM ARQUIVOS

    O material veio à tona através da curiosidade de Glauber Rocha, violonista e fã da dupla, e do alemão Michael Waiblinger, pesquisador do Meloclassic, um pequeno selo independente que pesquisa e lança gravações raras de música clássica.

    Glauber descobriu o Meloclassic por acaso, vendo vídeos antigos na internet, e resolveu perguntar a eles se tinham algo do duo. "Expliquei que eram gênios do violão e que até hoje só havia notícia de um vídeo deles", conta. A resposta foi um sonoro não. Dez dias mais tarde, Michael responderia que, na verdade, eles tinham encontrado dois vídeos dos Abreu.

    Lynn Ludwig, dona do Meloclassic, explica que sua diminuta equipe (são apenas três funcionários, incluindo a própria Lynn) passa semanas pesquisando em arquivos de rádio e TVs europeias em busca de materiais como esse.

    "Quando soubemos do interesse por vídeos do Duo Abreu, fomos nos informar sobre quem eles eram e ficamos maravilhados com o trabalho da dupla. Nelson Freire [pianista clássico brasileiro] é nosso amigo pessoal e nos incentivou a ir atrás do material. Foram muitas horas de pesquisa até encontrarmos esses vídeos", conta Lynn.

    Os vídeos do Meloclassic costumam ter cerca de 300 visualizações, já aquele em quem os irmãos Abreu tocam Rameau é o mais assistido, com seis mil visitas no YouTube até o fechamento da edição.

    O Meloclassic não possui os direitos comerciais do vídeo nem pretende fazer uso financeiro do material. "Publicamos com uma licença de 'fair use' [sem fins lucrativos] no YouTube, com autorização prévia de Sérgio", afirma Lynn.

    MÃO DO DONO

    Eduardo Abreu não quis comentar o aparecimento dos vídeos. Já Sérgio faz críticas ao vídeo do Rameau (justamente o que teve mais acessos) e elogios à "Tonadilla".

    "Essa gravação deve ter sido feita um pouco antes da gravação do LP da CBS em que ela está incluída. Fora um trecho curto em que o meu dedilhado no baixo não estava funcionando, gosto bem mais dessa versão do que da do disco. Esse movimento no LP está afobado, enquanto que nesse vídeo está no ponto exato", diz ele.

    Segundo Sérgio, o vídeo do Rameau não é de uma apresentação pública. "Essas não eram nossas roupas de recital, então creio que seja uma coisa informal que gravaram", conta ele, que faz críticas ao próprio desempenho.

    "Eu me lembro de ter gostado muito desse violão, que comprei durante a turnê, mas não lembrava de tê-lo usado logo em seguida. Uma temeridade, claro, e talvez explique (embora não justifique) tantos esbarrões escancarados de minha parte", finaliza.

    VILLA-LOBOS

    Poucos dias após o fechamento desta matéria foi encontrado um novo vídeo, dessa vez apenas de Sérgio Abreu tocando Villa-Lobos.

    Edição impressa

    Fale com a Redação - leitor@grupofolha.com.br

    Problemas no aplicativo? - novasplataformas@grupofolha.com.br

    Publicidade

    Folha de S.Paulo 2024