A democracia é como um recreio: "todo mundo pode brincar de tudo". Já a ditadura é como um ditado: "alguém diz o que é para fazer e todo mundo faz". Assim são definidos os dois regimes de governo na coleção infantil "Livros para o Amanhã", que pretende levar questões políticas e sociais a crianças a partir de oito anos.
Tradução da espanhola "Libros para Mañana", da editora La Gaya Ciencia, a coleção foi lançada lá fora dois anos depois da morte do ditador Francisco Franco (1892-1975). Como "ressaca" do período, os livros têm um notório caráter de ruptura do conservadorismo. Dois volumes já foram lançados aqui, em 2015: "A Democracia Pode Ser Assim", com ilustrações de Marta Pina, e "A Ditadura É Assim", cujos desenhos foram feitos por Mikel Casal. Em ambas as obras, acompanham as ilustrações textos explicativos escritos por intelectuais como Leandro Konder —um dos maiores estudiosos do marxismo no país, falecido em 2014— e Ruy Braga —sociólogo especializado em sociologia do trabalho.
De acordo com Thaisa Burani, editora do selo Boitatá, da Boitempo Editorial, uma criança entre os oito e dez anos está na fase de desenvolver autonomia e interesse por temas que encontra no cotidiano. "Durante seu amadurecimento, a criança naturalmente pratica política, seja questionando regras, seja estabelecendo combinados, seja elaborando a própria rotina dentro de casa e na escola etc.", diz Burani. "E nessa fase ocorre um salto qualitativo muito importante, de assimilação de conceitos abstratos, o que será basal para a elaboração da leitura crítica, da capacidade de análise. Enfim, costumo dizer que o adulto alienado é a criança que não pôde vivenciar esse processo plenamente."
A coleção "Livros para o Amanhã" chega em um momento de grande ebulição na política: discute-se o impeachment da presidenta Dilma Rousseff, o afastamento do presidente da Câmara Eduardo Cunha, a representatividade dos parlamentares, o próprio sistema político em si. "Percebemos uma demanda forte por parte de pais e educadores, porque muitas vezes eles não encontram material de apoio adequado para explicar às crianças conceitos como 'democracia', 'impeachment', 'corrupção' etc.", diz Burani. "É natural —a criança vê tudo isso na TV, na internet, e não passa incólume; ela quer entender, quer participar."
Ainda que o tom contrário ao conservadorismo seja notado na coleção, Burani garante que os livros "não levantam bandeiras políticas". "Sim, eles têm um caráter progressista, mas muito mais no sentido da autonomia de pensamento, da cidadania, do que de ideologia, no sentido 'esquerda x direita'", afirma.
"São livros que simplesmente se propõem a explicar conceitos políticos e sociais básicos, sem os quais não se faz nenhuma política, independentemente da ideologia. Para alterar a realidade, é preciso antes compreendê-la, e acho que isso é o que mais tem feito falta no Brasil de hoje, porque vemos setores sociais inteiros que confundem esses conceitos, que não entendem como a democracia se articula, qual a importância da mídia, dos movimentos sociais e de outros atores nisso."
Os dois próximos títulos —previstos para 2016— enfocam questões relacionadas a gêneros e classes sociais. "Seguem mais para esse lado da responsabilidade social", segundo a editora, "o que nos parece fundamental para a formação de uma sociedade mais tolerante e igualitária. Nenhuma criança nasce elitista, racista ou homofóbica; ela se torna assim se, desde cedo, escutar preconceitos e certos valores e questionamentos não forem semeados."