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    análise

    Gilberto Mendes colocou a criatividade acima do artesanato

    SIDNEY MOLINA
    CRÍTICO DA FOLHA

    02/01/2016 12h44

    Em "Ópera Aberta" (1976), de Gilberto Mendes (1922-2016), os floreios vocais gratuitos de uma cantora lírica são justapostos em cena com a exibição dos músculos perfeitos de um fisiculturista; na lateral do palco, um falso público aplaude tudo com entusiasmo.

    Mendes morreu aos 93 anos, no primeiro dia de 2016, em Santos, sua cidade natal. Em 1963, ao lado de Willy Corrêa de Oliveira, Rogério Duprat, Júlio Medaglia e outros, ele havia assinado o Manifesto Música Nova, que —juntamente com a criação do Festival Música Nova— o levou à liderança da vanguarda musical brasileira.

    É possível, entretanto, ser admirador das vanguardas musicais sem gostar da música de Gilberto Mendes. Suas obras, em geral, colocam a criatividade acima do desenvolvimento artesanal, recusam a elaboração paciente dos materiais musicais.

    Luiza Sigulem - 30.nov.2011/Folhapress
    O compositor Gilberto Mendes, criador do Festival Música Nova, posa para foto na Sala São Paulo
    O compositor Gilberto Mendes, criador do Festival Música Nova, posa para foto na Sala São Paulo

    Nas aulas de composição para os alunos da USP na década de 1980 ele mesmo admitia que os compositores do passado só escreviam longas sinfonias "porque não iam à praia" (uma de suas composições é justamente "Ulysses em Copacabana Surfando com James Joyce e Dorothy Lamour", de 1988).

    É estranho que essa "música-teatro" —sua denominação preferida— muitas vezes simples e cheia de humor tenha se tornado uma quase unanimidade crítica, aceita mesmo por aqueles que, em outros casos, tenderiam a recusar seu flerte libertário com todos os estilos e fusões da pós-modernidade.

    A teatralidade está embutida igualmente em obras instrumentais puras, como "Vento Noroeste" para piano (1982), na qual um acorde clássico de si maior interrompe obsessivamente o discurso atonal e fragmentário.

    Se a unanimidade crítica sobre sua obra parece um tanto apressada e irrefletida, a generosidade pessoal de Gilberto Mendes e a importância de sua presença como incentivador das gerações mais novas foram incontestáveis.

    Ele frequentemente ia a concertos de gente desconhecida e escrevia textos de CDs a pedido de jovens músicos; não amava apenas a música, mas o debate em torno dela, suas interações com outros domínios da cultura.

    Talvez a área para a qual ele tenha deixado uma contribuição mais consistente e palpável seja a da música coral, sobretudo graças à colaboração com o Madrigal Ars Viva de Santos (dirigido inicialmente por Klaus-Dieter Wolff e depois por Roberto Martins).

    Obras divertidas como "Ashmatour" (1971) —em que zomba da própria asma— e sua utilização de textos da poesia concreta paulista são destaques de sua produção, como o "Motet em Ré Menor: Beba Coca-Cola" (1967), sobre poema de Décio Pignatari (1927-2012), e "O Anjo Esquerdo da História" (1997), com texto de Haroldo de Campos (1929-2003).

    Nesta última —uma de suas melhores obras—, a força da elegia às vítimas do massacre de Eldorado dos Carajás (ocorrido em 1996 no Pará) faz Mendes passar abruptamente de um registro sacro para a pura declamação do rap, fechando um estranho requiem aos "sem terra afinal assentados na pleniposse da terra".

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