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    CRÍTICA

    Álbum cria oratório profano com sermões de padre Vieira

    SIDNEY MOLINA
    CRÍTICO DA FOLHA

    09/01/2016 03h12

    Divulgação
    Reprodução que mostra o padre Antônio Vieira pregando aos índios, em fascículo da coleção "História do Brasil" da Folha de S.Paulo. [FSP-Brasil-17.08.97]*** NÃO UTILIZAR SEM ANTES CHECAR CRÉDITO E LEGENDA***
    Gravura mostra padre Antônio Vieira convertendo índios

    Nesta virada de ano, "Antonio Vieira: do Tejo ao Amazonas" justifica plenamente o formato CD como um caminho (ainda) válido para a apreciação estética.

    É curioso que isso se dê por meio de de trechos selecionados de seis sermões do padre jesuíta Antonio Vieira (1608-97), que nasceu em Lisboa e morreu em Salvador. Narrada magistralmente pelo ator português Luis Lima Barreto, a seleção mantém intacto o virtuosismo lógico-retórico do escritor luso-baiano.

    O trabalho aposta no binômio som-palavra, ao qual adiciona a experiência do manuseio de um livreto de 56 páginas. Pode-se simplesmente fechar os olhos e ouvir (vale a pena) ou acompanhar o texto lendo passo a passo (vale a pena também).

    A direção artística é de Anna Maria Kieffer, cantora e pesquisadora que nunca separou história de estética, antigo de contemporâneo, performance de reflexão.

    Ao longo de mais de 30 anos tem se engajado em trabalhos importantes como "Cancioneiro da Imigração" (2004), "Marília de Dirceu" (1994) ou "Mel Nacional" (1993), entre muitos outros.

    Com a força musical das palavras, o próprio Vieira aponta —no "Sermão das Lágrimas de S. Pedro"— os riscos do ver: "Estes são os nossos olhos: choram porque veem, e veem para chorar. O chorar é o lastimoso fim do ver; e o ver é o triste princípio do chorar".

    Está lá igualmente o célebre trecho do "Sermão da Sexagésima", que inspirou de Sérgio Buarque de Holanda (1902-82) a Haroldo de Campos (1929-2003): "O pregar há de ser como quem semeia, e não como quem ladrilha, ou azuleja. Não fez Deus o céu em xadrez de estrelas, como os pregadores fazem o sermão em xadrez de palavras".

    Vieira às vezes parece não apenas ter lido Descartes (1596-1650) —o que teria sido possível—, mas também antecipar em 150 anos aspectos da filosofia de Hegel (1770-1831). Em outros momentos parece falar do mundo político atual, como no "Sermão do Bom Ladrão" (1655) e no "Sermão da Primeira Dominga do Advento" (1650).

    No primeiro cita Seronato, aquele "que queria tirar os ladrões do mundo para roubar só"; no segundo defende que a omissão seja o maior dos pecados dos governantes: pecado "que se faz não fazendo" e que "furta o tempo à República", o que jamais se restitui.

    ESCURO E FORTE

    A abordagem musical encontra o ponto exato entre o antigo e o contemporâneo. É pensada como um oratório profano, que parte do canto gregoriano (resgatado pelo regente Vitor Gabriel), mas que se liberta sutilmente dele ao fazer música com citações latinas. É um CD escuro e forte.

    Simultaneamente à recitação e aos cantos, Vanderlei Lucentini conduz o discurso com uma música eletroacústica nada invasiva: pontua o gregoriano, mostra fraturas, controla a tensão, mas também traz a chuva, perscruta o som das estrelas.

    Elementos amazônicos vão gradualmente invadindo o discurso do jesuíta, até que, no final do sermão proferido em São Luís do Maranhão, deságuam em pura pajelança, como a marcar "a empresa dificultosíssima de pregar a gentes de diversas e incógnitas línguas".

    ANTONIO VIEIRA: DO TEJO AO AMAZONAS
    QUANTO: R$ 40
    AUTOR: LUIS LIMA BARRETO E ANNA MARIA KIEFFER
    GRAVADORA: AKRON

    Edição impressa

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