Almada Negreiros | ||
Caricatura do poeta Mário de Sá-Carneiro feita por Almada Negreiros |
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Ilustrada
Tuesday, 30-Apr-2024 00:45:55 -03CRÍTICA
Antologia revigora leveza de Almada Negreiros
LEONARDO GANDOLFI
ESPECIAL PARA A FOLHA12/01/2016 02h01
Poeta e artista plástico, Almada Negreiros foi um dos protagonistas —ao lado de Sá Carneiro e de Fernando Pessoa— da revista "Orpheu", publicação que melhor representa o modernismo português. Como poucos, ele praticou a narrativa, o teatro, o desenho e a performance. E é no cruzamento dessas derivas que seu trabalho ganha espessura.
Pensando em tal multiplicidade, os pesquisadores Fernando Cabral Martins e Sílvia Laureano Costa organizaram "Poesia É Criação", antologia que circula no Brasil a obra de um dos portugueses mais importantes do último século.
Esse livro só pode ser entendido como de poesia se entendermos a poesia num sentido extenso, como Almada a entende: "Quando eu nasci, as frases que hão de salvar a humanidade já estavam todas escritas, só faltava uma coisa —salvar a humanidade", anota o autor na pequena obra-prima, metade poema e metade conferência, "A Invenção do Dia Claro", de 1921.
Salvar a todos de seu próprio embrutecimento é a tônica utópica e bem-humorada de sua arte. O humor do inusitado combinado ao gosto pela ingenuidade dá movimento à sua escrita: "Cada um dos vinte e dois sinais era uma letra. Cada combinação de letras uma palavra", diz o artista. E acrescenta: "Há palavras que fazem bater mais depressa o coração".
A ingenuidade proposta por ele se aproxima da máxima de Oswald de Andrade, "ver com olhos livres", ou seja, trata-se de uma ingenuidade aprendida. Ao incentivar a desautomatização, Almada avisa: "Nós não somos do século d'inventar as palavras. As palavras já foram inventadas. Nós somos do século d'inventar outra vez as palavras que já foram inventadas".
Para ele, escrever é desenhar com a sutileza da criança, como queria Nietzsche. Tal leveza sugere desorganização dos saberes e reformulação das paixões. Com Almada, reaprende-se a ver para que seja possível uma nova forma de amor à primeira vista.
A antologia passeia por alguns de seus mais importantes textos, como o polêmico "A Cena do Ódio", de 1915, que se inicia assim: "Ergo-me Pederasta apupado d'imbecis".
As narrativas de Almada também podem surpreender. É o caso de "O Kágado", de 1921, parábola carregada de ironia e crítica social. Outro destaque são as conferências, entre elas, "Modernismo", de 1926, depoimento sobre os amigos de geração.
Certa vez, João Cabral de Melo Neto falou sobre a façanha que seria —se não se é canhoto— escrever com a mão esquerda, isto é, com a mesma mão com que Miró passou a desenhar. Ao atravessarmos as páginas de "Poesia É Criação", o sentimento é de que estamos, como poucas vezes estivemos, diante da aventura que é escrever com essa mesma mão aprendiz.
LEONARDO GANDOLFI é poeta e professor de literatura portuguesa na Unifesp e autor de "Escala Richter" (7letras, 2015).Fale com a Redação - leitor@grupofolha.com.br
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