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    ANÁLISE

    Vozeirão de Alan Rickman, ator genial do teatro, tinha vida própria

    JOÃO WADY CURY
    COLABORAÇÃO PARA A FOLHA

    17/01/2016 03h26

    Prepare-se, lá vem sopapo. Apagam-se as luzes. A plateia mergulha na escuridão que precede as grandes revelações. O silêncio é cortado por aquelas tosses e pigarros ridículos. Daria no mesmo se as pessoas gritassem um "esse escuro me sufoca". Mal sabiam que a coisa iria piorar.

    O homem entra. O refletor espoca um facho de luz. Toma o palco todinho. Não, melhor, sua voz. Sua voz toma o palco, rasga o ar e entra em nossos corpos. Somos todos aquela voz, não temos como nos livrar. Ainda bem. Prazer, dona voz, assim te reconhecemos e saudamos: seu nome é Alan Rickman.

    Sua voz tinha vida própria. Poderia pagar imposto, com direito a RG e CPF próprios. Mas não. Ainda bem.

    Aquele palco está fincado na cidade de Londres e era uma daquelas noites geladas de um abril de 1986. O teatro do Barbican acabara de estrear a peça "Mephisto".

    E agora estamos vendidos novamente. Rickman veste a mesma personagem que foi de Klaus Maria Brandauer no cinema. Chama-se Hendrick Hoefgen e é um ator de teatro que bandeia para o lado nazista em troca de sua ambição. A coisa acaba mal para ele, mas saímos vingados: Rickman é rei e nada nos faltará.

    Esqueça o Snape, de "Harry Potter". Deixe de lado o Hans Gruber do primeiro "Duro de Matar" ou mesmo o xerife de "Robin Wood". Ele, como ator genial, fez muitos personagens que são seu oposto. Que o diga sua atuação no doce "Simplesmente Amor".

    Foi pouco. Protagonizou vários filmes românticos e estraçalhou corações. Posts com declarações de amor incontido podem dar algumas voltas ao redor do Sol. Mas era bom-moço, apesar do olhar de tédio incontido. Vivia com seu amor de adolescência, Rima Horton, desde 1965.

    Mas largue tudo isso e abrace o improvável. Corra para a internet e assista a "Play", dirigida por Anthony Minghella, baseada em peça de Beckett. Rickman, enfiado em um vaso de cerâmica, sapeca o texto do irlandês com maestria, com Kristin Scott Thomas e Juliet Stevenson.

    Toda vez que morre um ator, uma atriz ou poeta, o mundo parece piorar. É pelos olhos deles que podemos ver e sentir a vida de forma única.

    Mas, note, é possível ouvir daqui: o vozeirão de Rickman ainda ecoa no Barbican.

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