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    Rotina discreta tornou David Bowie quase invisível em Nova York

    STEVEN KURUTZ
    DO "NEW YORK TIMES"

    20/01/2016 17h29

    Dez anos atrás o dramaturgo John Guare recebeu pelo telefone um convite para um encontro com David Bowie para falar de um projeto teatral.

    Guare recorda que Bowie passava por uma fase muito difícil (foi pouco depois de ele ter sofrido um enfarto em pleno palco em Berlim), e um amigo em comum, o produtor inglês Robert Fox, estava tentando persuadi-lo a voltar à vida criativa. Guare aceitou o convite imediatamente.

    Ele e Bowie se encontraram em suas respectivas residências em Nova York para discutir ideias, e às vezes eles saíam. "Fazíamos caminhadas pelo East Village", Guare contou. "Eu rezava para encontrar algum conhecido, para poder dizer: 'Você conhece meu amigo David Bowie?'."

    Isso nunca aconteceu.

    Guare ficou primeiro perplexo e depois espantado com o modo como Bowie podia andar pela cidade sem ser reconhecido. Bowie, aquele ser do palco, aquela persona, o sujeito que Guare tinha visto comandar a plateia do Radio City Music Hall em 1973 com seu cabelo cor de laranja espetado e sua pele branca como a neve.

    "Ele andava envolto num manto de invisibilidade", disse Guare. "Ninguém o via. Ele simplesmente se erradicava."

    As pessoas se esqueciam disso com frequência, mas até sua morte, ocorrida no último dia 10, aos 69 anos, Bowie era morador de Nova York. Ele mesmo o dizia enfaticamente. "Sou nova-iorquino!", declarou à revista "Soma" em 2003, depois de morar uma década na cidade.

    Ele e sua mulher, a somali Iman, modelo que fala cinco línguas fluentemente, passaram quase sua vida inteira de casados, mais de 20 anos, como moradores de Nova York. Qualquer pessoa lhe dirá que eles eram um dos casais mais glamourosos e elegantes da cidade, mais ainda devido à dignidade com que viviam, protegendo sua privacidade.

    E, embora Bowie fosse riquíssimo, ele não era um daqueles sujeitos ricos que mantém um apartamento em Nova York e um portfólio de outros imóveis espalhados pelo mundo e apenas vão à cidade ocasionalmente. Tirando uma casa de montanha em Ulster County, no interior de Nova York, seu apartamento em Manhattan era sua única residência.

    Você pode não ter tomado conhecimento de tudo isso porque Bowie era uma aparição ocasional na cidade, raramente visto de relance. Você ouviu falar que ele vivia aqui. Em algum lugar do centro, pensavam alguns. Mas vê-lo pessoalmente? Pouco provável.

    O veterano colunista da noite (e ocasional colaborador do "New York Times") Michael Musto encontrou Bowie numa festa nos anos 1970 mas o viu poucas vezes desde então, ele disse. O poeta Gerhard Malanga, que conviveu com Andy Warhol, vivia a três quadras de Bowie e tinha amigos em comum com ele, descreveu-se como "uma pessoa entre os milhões que nunca toparam com David na rua ou em qualquer outro lugar".

    David Bowie não era recluso no mesmo nível que Greta Garbo. Ele saía o suficiente para evitar o destino terrível de chamar a atenção para si mesmo por proteger sua privacidade. Mas, se as pessoas às vezes o viam no Lincoln Center ou jantando fora com Iman, geralmente evitavam abordá-lo, por respeito e também por se sentirem intimidadas.

    "Sempre o achei inabordável", falou Musto. "Mas ele era altamente simpático e acessível."

    "As identidades fabulosas que ele tinha", disse Guare —ou seja, Ziggy Stardust, Aladdin Sane, The Thin White Duke ou até o Bowie dos anos 1980, que parecia o serial killer mais elegante do mundo— "não guardavam qualquer reflexo da pessoa que as carregava."

    "Acho que ele tinha acesso completo a David Jones", disse Guare, aludindo ao nome de nascimento de Bowie. "E foi David Jones quem eu conheci."

    Bowie ouviu Nova York antes de ver a cidade. Quando tinha 19 anos e ainda vivia na Inglaterra, seu empresário, de volta dos Estados Unidos, lhe deu um disco em acetato de "The Velvet Underground and Nico", obtido diretamente de Warhol.

    "Ouvi um grau de 'cool' que eu não imaginava que fosse humanamente possível manter", ele escreveria mais tarde em um ensaio para a revista "New York".

    TURISTA DEVASSO

    Bowie viajou a Nova York em 1971, mais ou menos na época em que lançou "Hunky Dory", seu quarto álbum.

    Um dos primeiros moradores da cidade que ele conheceu foi Moondog, um músico de rua cego, de barba longa, que trajava vestes longas, usava um capacete de viking na cabeça e se plantava na rua West 54th. Nessa viagem Bowie visitou The Factory (o estúdio de Andy Warhol) —ele queria tocar sua canção "Andy Warhol" para o próprio artista.

    ouça

    Quando voltou a Nova York por um período mais longo, em 1972, estava acompanhado por sua primeira mulher, Angie, e seu novo empresário, Tony DeFries, que acreditava no valor de performances geradoras de publicidade para produzir sucesso. Nessa época Bowie não passou pela cidade envolto num manto de invisibilidade. Ele ia a todo lugar de limusine e apresentava-se como uma obra de arte abstrata.

    Bebe Buell, música e namorada de roqueiros, recorda a chegada de Bowie ao Max's Kansas City: "Ele entrou usando terno azul claro e cabelos cor de laranja. Todos ficamos assombrados."

    Depois de tornar-se Ziggy Stardust e um grande astro, Bowie se refugiou no apartamento de sua assessora publicitária, Cherry Vanilla, na rua West 20th. Na autobiografia dela, "Lick Me", ela relata que ele cheirava quantidades absurdas de cocaína e se nutria de leite (nada de alimentos sólidos naqueles anos) e que eles cantavam sobre "poder, símbolos, comunicação, música, ocultismo, Aleister Crowley e o mago Merlin".

    Como muitos roqueiros, David Bowie vivia em hotéis: primeiro o Gramercy Park Hotel e depois o Sherry-Netherland, até a conta do serviço de quarto ficar alta demais. Ao longo dos anos 1970 ele não foi tanto cidadão de Nova York quanto um turista devasso, indo em sua limusine para o Max's, Paradise Garage e Reno Sweeney. Curioso e socialmente hábil, transitava entre o Studio 54 e o CBGB e curtia a companhia de Mick e Bianca Jagger e Iggy Pop.

    No ensaio para a "New York", Bowie escreveu a respeito daquele período: "Eu raramente acordava antes do meio-dia e me deitava de novo às 4h ou 5h da manhã". Ele via a cidade através de "óculos multicoloridos".

    CASEIRO

    Como já foi amplamente citado, Bowie deixou a América para radicar-se em Berlim, em parte para fugir de seu modo de vida movido a drogas.

    Em 1980, depois de gravar os álbuns "Low", "Heroes" e "Lodger", que ficaram conhecidos como sua trilogia de Berlim, ele voltou a Nova York, desta vez como o "Elephant Man" no teatro Booth, na Broadway ("ele é magnífico", escreveu o "New York Times"). Em 1982, com produção de Nile Rodgers, gravou o álbum "Let's Dance" no Power Station na rua West 53rd Street, um triunfo sonoro e comercial. Mas, apesar de todas suas vitórias e de suas baladas noturnas em Nova York, Bowie parecia incapaz de engajar-se com a cidade.

    Quando Iman conheceu Bowie num jantar em 1990, ele vivia na Suíça como exilado fiscal, cidadão do mundo. Ela não aceitou, como contou certa vez ao "Guardian": "Sou nova-iorquina. Falei 'vamos para casa'."

    Eles se casaram em 1992 e se mudaram para um apartamento convencional do pré-guerra em Central Park South. Tiveram uma filha, Lexi. Em 1999, pagaram US$ 4 milhões por uma cobertura dupla na rua Lafayette, no SoHo, e ali ficaram. Foi também ali que os fãs de Bowie se reuniram para deixar flores no frio gélido depois que ele morreu, sem saber até aquele dia que ele tinha sido nova-iorquino como eles.

    Com o tempo, Bowie se transformou num nova-iorquino de verdade. Absorveu a atitude e as idiossincrasias culturais da cidade. Escreveu uma canção ("Slip Away") sobre Uncle Floyd, apresentador de um programa de televisão estranho, de baixo orçamento, quase infantil, que era transmitido localmente nos tempos do UHF.

    ouça

    Depois dos ataques do 11 de setembro, ele fez uma apresentação comovente no Concerto para Nova York, no Madison Square Garden. Antes de cantar "Heroes", anunciou no palco: "Quero dizer alô especialmente ao pessoal de minha escada local. Vocês sabem onde estão."

    Percebe-se em fotos como foi discreto e adulto o segundo período em que Bowie viveu na cidade. "Ele ia ao balé, a todos os eventos culturais bacanas", disse Patrick McMullan, que o fotografou ao longo dos anos, mas muito menos depois do ataque cardíaco que Bowie sofreu em Berlim.

    Bowie estava sempre de terno elegante ou smoking. Era visto regularmente no baile de gala do Met (Met Gala) ou na entrega dos prêmios do Conselho de Estilistas da América, acompanhando sua mulher. Nunca foi flagrado saindo chapado de um clube às 4h da manhã. Ele já tinha ido a festas suficientes por toda uma vida.

    Iman certa vez o descreveu como "caseiro"; a revista "The Onion" o imaginou como um "alienígena panssexual" que fica em casa para "preparar uma lasanha para o jantar". Ele vivia uma vida aparentemente muito normal. Fazia compras de supermercado uma vez por semana na Dean & DeLuca. Gostava do sanduíche de frango com agrião e tomates da Olive's, na rua Prince. Gostava de acordar às 6h e se energizar com uma caminhada nas ruas de Chinatown, ainda vazias naquele horário.

    Ele lia muito. Colecionava arte. Pintava. Ele e Iman eram amigos dos pais das amigas de escola de sua filha. Bowie passou o tempo que lhe restou de vida de modo significativo e produtivo. E, em grande parte, em Nova York.

    Ele parou de fazer turnês em 2004. Deixava Nova York apenas quando o trabalho o exigia. Durante sua espantosa explosão criativa do final da vida, encontrou uma maneira de sequer sair de seu próprio bairro.

    "Lazarus", o show para o qual Bowie compôs canções e reviveu o extraterrestre perdido que representou no filme de 1976 "The Man Who Fell to Earth", foi encenado no New York Theater Workshop, na rua East Fourth, a menos de dez quadras da casa dele.

    Tanto seu álbum de 2013 "The Next Day" quanto os demos para seu álbum final, "Blackstar" —lançado no seu aniversário, apenas dois dias antes de ele morrer— foram gravados no estúdio Magic Shop, na rua Crosby, a 283 passos da entrada de seu edifício.

    Bowie descia de seu apartamento no elevador, saía do prédio, atravessava a rua Lafayette, passava por uma viela chamada Jersey Street e andava sobre paralelepípedos até chegar às portas metálicas do estúdio.

    Brian Thorn, técnico de gravação nas sessões de "Next Day", disse que Bowie fazia horários de trabalho "muito moderados", em se tratando de um roqueiro. "A gente começava às 10h. Bowie chegava lá com os músicos ou antes deles. O estúdio já tinha o café dele pronto" —um macchiato duplo do La Colombe.

    Thorn ouviu Bowie e seu guitarrista conversando um dia. O guitarrista estava falando de uma exposição de arte e de como Bowie iria adorar. Mas então ele se conteve, percebendo com quem estava falando, e disse: "Só que você nunca poderia ir lá, tem gente demais".

    Bowie respondeu: "Você não imagina os lugares onde consigo ir".

    Tradução CLARA ALLAIN

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