Quando se anunciava que o bando de Lampião (1898-1938) ia passar pela região da Chapada Diamantina, seus moradores pegavam a carne seca e a farinha de mandioca que tinham à mão, colocavam tudo numa tigela, abandonavam as casas e passavam dias no meio do mato, esperando.
Nascida para os lados de lá, na cidade de Piritiba, a diretora Maria Thaís, professora do departamento de artes cênicas da USP, cresceu ouvindo histórias como essa.
Seu mais recente espetáculo, "Cabras - Cabeças que Voam, Cabeças que Rolam", que estreia nesta sexta (22), retorna ao tema, embora sem se ater exclusivamente a ele.
Maria Thaís conta que, sobre o cangaço, é difícil distinguir o que é história do que é mito, razão pela qual abriu as fronteiras. Sua peça estende-se para situações de conflito e de guerra também em culturas vizinhas, incluindo canções populares colombianas, espanholas e mexicanas.
Lenise Pinheiro/Folhapress | ||
Flávia Teixeira e Gustavo Xella durante cena de 'Cabras - Cabeças que Voam, Cabeças que Rolam' |
O texto, assinado por Luís Alberto de Abreu, se desdobra em 20 histórias divididas em quatro módulos com seus respectivos subtemas: entram em jogo as brigas sangrentas entre famílias; o sufocamento cultural de índios e negros; a tradução das guerras nas festividades e nas manifestações da cultura popular; e as transições entre períodos de paz e de guerra.
A progressão dessa rede de narrativas conjuga sonoridades, dança e a concepção espacial de Márcio Medina.
O cenário é desenhado com vistas para um trabalho que aproxima o artista do perfil dos artesãos. O piso é preenchido por uma cortiça processada, enrijecida como pedregulho: o atrito nos pés dos intérpretes provoca sons que remetem à aridez do sertão.
MULTIPLICIDADE
A multiplicidade de histórias também contamina a maneira como Maria Thaís pensa a ação, povoando o espaço cênico com uma dinâmica estranha, de personagens que são também narradores e que pulam de intérprete para intérprete. "Cabras", aliás, é narrada também por animais, armas e objetos.
Não é um trabalho fácil, a própria diretora assume. "Mas as dificuldades criam impacto no espectador", defende. "Quando eu era adolescente, li 'Grande Sertão: Veredas' [de Guimarães Rosa] e achei muito difícil. Até que eu fiz uma descoberta: era mais fácil ler em voz alta. A fruição estética, às vezes, exige da plateia uma atitude criativa."
Nesse bando de almas permanece, para a diretora, a intenção de retornar aos significados da guerra que recusam os do "modelo capitalista", ou os "de um sistema que sobrevive de exterminar outros povos e culturas".