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    CRÍTICA

    Em HQ, virtuose do nanquim faz bom relato da China de Mao

    ÉRICO ASSIS
    COLABORAÇÃO PARA A FOLHA

    26/01/2016 02h00

    Divulgação
    Trecho de 'Uma Vida Chinesa', de Li Kunwu e Philippe Otié. CRÃDITO: Divulgação ***DIREITOS RESERVADOS. NÃO PUBLICAR SEM AUTORIZAÇÃO DO DETENTOR DOS DIREITOS AUTORAIS E DE IMAGEM***
    Trecho de 'Uma Vida Chinesa', de Li Kunwu e Philippe Ôtié

    Leitores de quadrinhos já estão bastante acostumados às autobiografias, assim como a uma subdivisão das histórias de vidas particulares que ajudam a iluminar a trajetória de um grupo, de um povo ou de um período histórico.

    "Ao Coração da Tempestade", de Will Eisner, é retrato da experiência judia nos EUA no início do século 20. "Gen - Pés Descalços", de Keiji Nakazawa, parte de uma vivência infantil para contar o bombardeio de Hiroshima em 1945. "Persépolis", de Marjane Satrapi, é um olhar da Revolução Islâmica no Irã.

    É a intenção de "Uma Vida Chinesa", de Li Kunwu, em colaboração com o diplomata francês Philip Ôtié.

    Kunwu, 60 anos, viveu infância e adolescência em meio às grandes reformas sociais promovidas por Mao Tsé-Tung, tais como o Grande Salto Adiante e a Grande Revolução Cultural Proletária.

    É esse processo de transformação que o autor conta a partir de si mesmo, de seus pais e amigos numa cidadezinha na província de Yunnan.

    O leitor pouco familiarizado com a história chinesa talvez sinta falta de contextualização. Os autores não se propõem a dar aula de história, nem param a narrativa para explicar pormenores do país.

    A Grande Fome Chinesa que durou de 1958 a 1961, por exemplo, levou a pelo menos 15 milhões de mortes, segundo estimativas conservadoras do próprio governo.

    O dado não aparece na HQ, mas o período é representado por cenas como aquela em que o protagonista guarda um naco de carne no almoço do colégio para levar à avó —três quadros detêm-se na idosa sorvendo lentamente o "presente maravilhoso"— ou nas notícias que chegam de parentes da zona rural, onde a mortandade é assustadora.

    A Revolução Cultural está representada sobretudo na Guarda Vermelha, as brigadas juvenis que promulgavam "O Livro Vermelho" de Mao e desafiavam qualquer sinal de oposição ao regime.

    Kunwu, por volta dos 12 anos, participa ativamente do movimento: ele e colegas organizam humilhação pública de seus próprios professores por serem "pequeno-burgueses", invadem banhos públicos para denunciar "costumes feudais", vão a salões de corte de cabelo para combater "cortes antirrevolucionários".

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    Trecho de 'Uma Vida Chinesa', de Li Kunwu e Philippe Otié. CRÃDITO: Divulgação ***DIREITOS RESERVADOS. NÃO PUBLICAR SEM AUTORIZAÇÃO DO DETENTOR DOS DIREITOS AUTORAIS E DE IMAGEM***
    Trecho de 'Uma Vida Chinesa', de Li Kunwu e Philippe Ôtié

    'ABAIXO O CAPITALISMO!'

    É deste período que vem o primeiro contato de Kunwu com a arte. Para deixar claro o que é um "corte antirrevolucionário", ele desenha retratos para explicar penteados "certos" e "errados".

    Numa das memórias que o autor mais explora, ele e sua turma invadem a casa de um "reacionário feudal" para destruir obras de arte de aparência ocidental, gritando "abaixo o capitalismo!".

    É nisso que Kunwu se permite uma crítica: diz que atos como aquele, feitos na "despreocupação da juventude", vinham do "prazer [de] deixar-se levar pela tolice".

    Mas é uma autocrítica, não um ataque ao regime. Mesmo quando a Guarda Vermelha chega ao ápice do denuncismo e a consequência para a família de Kunwu é trágica, ele se furta de tecer análise.

    Fica ao leitor decidir se é opção relatar os fatos de forma acrítica ou se o autor não guarda ressentimentos do que fez e que lhe ocorreu por conta do manejo político do país.

    Voltando à comparação com Eisner, Kunwu é, tal como o americano, uma virtuose do nanquim e da estilização expressiva do homem. Suas deformações de rostos e corpos servem à cada cena sempre em busca do maior impacto, muitas vezes a partir da repetição —há diversas cenas de massas de chineses, imagem típica da revolução.

    O único rosto onipresente, a face que permanece com perfeição realista é o de Mao. É a figura do pai da revolução, incontestável, que paira sobre todo este primeiro volume.

    UMA VIDA CHINESA - VOL. 1: O TEMPO DO PAI
    AUTORES Li Kunwu e Philippe Ôtié
    TRADUÇÃO Andréa Stahel M. da Silva
    EDITORA WMF Martins Fontes
    QUANTO R$ 44,90 (256 págs.)

    Edição impressa

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